quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Acerca de Dostoiévski

A obra de Dostoiévski pode ser encarada de um ponto-de-vista binário: ao mesmo tempo que o autor aponta para importância do ter-consciência-de-si, também nos mostra os contras que essa consciência apurada acarreta. Nos livros de Dostoiévski, pelo menos entre os que li, as personagens principais apresentam personalidade culta e cindida. Essa é uma característica que perfaz uma máxima interessante do sociólogo Lucien Goldmann acerca do romance, posto que para ele o gênero diz respeito à “experiência de um personagem degradado num mundo degradado”. A degradação da personagem, importante dizer, é posterior à degradação do mundo. Nesse caso, para haver a degeneração do herói é necessário que o meio lhe ofereça condições para tanto. E essa degeneração, ou melhor, essa iluminação dos princípios, em Dostoiévski, é alcançada através do pensamento. Em meio ao caos, o uso da razão direciona as personagens a hipóteses absurdas sobre os mais variados temas. É isso o que acontece, por exemplo, em romances como Recordações da casa dos mortos, no qual o autor, através de certo detento que por matar a esposa é mandado para as galés da Sibéria, discorre sobre dois tópicos prementes na sua obra: liberdade e arbitrariedade da justiça. As prisões da Sibéria, além de resguardarem criminosos convencionais, também serviam de ardil a detratores políticos. Desse modo, a casa dos mortos é o lugar onde se fecundam os mais variados tipos de contradição. Desde os fins “reabilitativos” do sistema penal aos privilégios dos detentos burgueses, o espaço a partir do qual se motivam as peripécias da narrativa, servirá de júri àqueles que, iguais a personagem principal, se sentem impelidos pelo poder de coação da justiça russa. Nisso questiona-se por quais motivos alguns personagens foram condenados à prisão perpétua e outros, que são confrontados com esses primeiros, não, o que faz com que o interlocutor se indigne com a pena recebida pelo parricida ou pelo assassino do general e queira que a prisão mais ardilosa seja aplicada ao mau político ou ao pequeno larápio. Questiona-se também o sentido da liberdade; sobre ela o autor irá dizer que “verdadeira liberdade é poder estar sozinho”; haja vista que a personagem se via asfixiada pela presença constante dos outros detentos, o fato de estar preso, com efeito, é uma espécie de tolhimento duplicado da liberdade, uma vez que a personagem, além de não poder manter contato com o mundo aquém das grades, não pode estar só dentro daquilo que circunscreve o âmbito delas. Com essas constatações, Dostoiévski nos mostra, a partir do absurdo literário, o panorama das nossas próprias vidas – ou da vida russa. Sendo assim, a crítica política se apresenta não como um tratado sociológico, onde tudo está amplamente desnudado, mas como uma problematização enriquecida de literariedade – as nossas vidas são analisadas no seu estado permanente, o movimento.

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