segunda-feira, 18 de julho de 2022

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FilhaA causalidade genealógica registrada no pensamento mitopoético demarca que do Amor, Eros, decorre toda vida, e é fácil corroborar esta constatação quando olhamos na nossa própria descendência o impulso vital e divino que contorna de sentido o ato de existir.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

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Ausência. A demagogia transitória da luta pelo voto adjetiva a ausência como categoria política fundamental do sistema representativo.

terça-feira, 7 de junho de 2022

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Emoji. Quantos monstros emprestando os dentes brancos de seu sorriso a todas as misérias...

sábado, 4 de junho de 2022

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Desista. Em seu pequeno conto Desista!, Kafka nos apresenta um homem à deriva numa cidade onde é estrangeiro. Cumpre ali por certo algum compromisso protocolar, talvez demandado por esta sorte aporrinhante de obrigação profissional inadiável, em que a ausência configura sobretudo negligência financeira; não obstante, prejuízo. Ao abrigo da rua, colecionando as precauções do forasteiro, confronta as horas marcadas no relógio de uma torre com aquelas inscritas no seu pulso. Para o seu desterro, apercebeu-se entre ambas incompatibilidade, quiçá pela alteração de fuso horário desta cidade em relação àquela de onde viera. O certo é que o susto turvou-lhe o senso espacial e já não mais sabia o caminho da estação ferroviária, na qual o trem que o levaria para casa poderia estar já em vias de saída. Como se quisesse voltar a se situar rapidamente, a fim de alcançar a tempo sua diligência, ponderou a um guarda que avistara numa esquina sobre como chegar ao seu destino. A contrapelo das expectativas que instituíra naquela autoridade, naquele homem entornado numa farda, à sua indagação fora retorquido com outra pergunta, esta fria, dolorosa, cruel, qual seja, "De mim você quer saber o caminho?". Ao sim evasivo do nosso homem exilado, o guarda, sarcástico e sem querer ajudá-lo, arrematou o colóquio sem conceder-lhe quaisquer contrapartidas à esperança projetada, sentenciando: "Desista!".
Este mesmo homem menoscabado pela autoridade constituída figura em toda a literatura de Kafka, a mercê de situações absurdas que alcançam sua existência contingencialmente. O deslocamento ao qual ele é compelido sob a metáfora de alguém que se vê frustrado em suas expectativas dirigidas ao direito encerra todas as pré-condições do investigador que se ocupa em buscar o fundamento da justiça. A nebulosa inaugurada nessa relação tortuosa com a autoridade, em que o apenado ignora completamente tanto o seu crime como os critérios que pesam sobre a escolha de sua sentença, reproduz a arbitrariedade ontológica de todo o processo, cujas razões, afinal, escamoteiam a ausência de determinações universais que as subsidie, resguardando-se ao sigilo dos operadores da lei os termos finais de instauração da justiça. O sarcasmo que adereça a resposta do guarda é a voz do direito encerrada na única modulação estética capaz de externar consciência total de si. Em casa, destino que se liga a toda estação, os sentidos se expandem sem refratar nenhum detalhe da paisagem, abraçando cada um de seus elementos com mesma intimidade que a representação se relaciona fundamentalmente a um conceito. A juris-diction do guarda estorva esse destino, preconizando o atabalhoamento do estrangeiro e o seu encarceramento num círculo de coisas que a todo instante lhe causam estranhamento.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

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Bala Perdida. A topografia percorrida pela bala que se diz perdida é sempre a mesma: ela galga os morros cortando vielas asfixiadas por construções habitacionais paupérrimas à procura da mera vida - do corpo biológico socialmente abortado. A indeterminação de sua origem é aventada porque a multidão de vítimas encontrada por ela é a heresia inexpiável do Estado, os holocaustos políticos enjeitados por Deus.

terça-feira, 31 de maio de 2022

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Não pensar. O corolário da hiperconectividade é a exposição contínua a algo parecido com a verdade. À velocidade cada vez mais agressiva dos fluxos da vida recresce uma incapacidade preocupante para o pensamento. Nunca pareceu tão patente a sensação de exterioridade do exercício da razão, como se fôssemos a concepção de desejos que vêm de fora, expropriados por completo da sensível tarefa de pensarmos por nós mesmos. Se uma atividade se apresenta vestida pelo manto difuso da novidade, o tutorial das plataformas digitais assume os riscos e os arranhões da experiência, subtrai-nos ao perigo biológico da infecção e do contágio, apresentando o caminho que se deseja percorrer sob a luz da objetividade, sem as sinuosidades ou obstáculos que requestam atenção para o próximo passo. Estando tudo descoberto, excessivamente real, a transparência que desvenda o mundo também o torna menos sensual, porque, de fora, a curiosidade que se inscrevia na fachada, como a lascívia excitada só pela roupa, já não convida a saber o que há dentro. O dentro não existe, senão como a negatividade oculta do poder.

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Nazismo no Brasil. A aversão de Bolsonaro à legalidade imiscuiu-se no seu mandato como elemento essencial de seu fazer político. Quando as suspeitas que o rondam não precisaram ser ataviadas pela retórica leniente dos juízes, quando os corpos de sua prole não precisaram ser salvaguardados pela toga ao sentirem de perto o calor intenso da prisão, a ruptura institucional esteve sempre no seu radar. O aspecto positivo desse jogo de tensões inaugurado pelo capitão é substancialmente geométrico, porque desvelou, não só para os fascistas que o garantem mas também para uma esquerda cada vez mais melindrosa, as proporções reais do poder emanado pela côrte e que a verticalidade pressuposta pela finnesse de suas vestes é extremamente tênue, a ponto de ser facilmente vencida pela motivação de um cabo e de um soldado. Se a dissolução desses poderes está inscrita na agenda de qualquer revolução, ela representa também um movimento que inaugura a tirania, porque o direito incorporado tanto por uma como pela outra, não possuindo fundamento transcendental que as garanta como puramente justas, espelha os interesses dos vitoriosos na disputa política. Sendo assim, quando Bolsonaro contradiz suas pulsões disruptivas e invoca as leis sem o acometimento de excessos no caso do homem torturado por policiais rodoviários federais em Sergipe, ele defende implicitamente não a justa reparação preconizada por elas, mas o abrandamento do direito ante um crime inescrupuloso e indefensável, porque dois policiais monstruosos, para ele, continuam tendo mais valor que um anônimo cuja vida fora vilipendiada de forma infame e brutal.

Como se constrói uma nação miserável. O Haiti foi o primeiro Estado da América Latina a se tornar independente. Sua afirmação enquanto país foi afiançada pelo sangue de escravos revoltosos que insurgiram contra a metrópole colonial em 1794. Entretanto, depois de algumas reviravoltas, a consolidação da independência haitiana viria ocorrer apenas em 1804, sob a desconfiança das elites políticas e econômicas de territórios coloniais circunvizinhos que se beneficiavam da mão-de-obra escrava nativa e negra. Seguindo a sua tradição histórica de arrasar outros países em favor de sua própria liberdade, os EUA impingiram ao Haiti um bloqueio comercial de quase 60 anos. Já a França, na expectativa de ser reparada pela perda dos "seus territórios", exigiu uma compensação financeira de 150 milhões de francos ao Estado recém-emancipado, chafurdando-o na profunda miséria que o acompanha até os dias hodiernos. O destino do Haiti é o de toda a América Latina: compensar a quem lhe subtrai pela restituição do que lhe foi roubado.

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Mestre Ignorante. O título desta obra de Jacques Rancière, O mestre ignorante, sugere um contrassenso, porque à figura de um mestre se ata, como predicado, a qualidade de sábio, a ponto de as duas palavras serem tratadas como homônimas, uma encerrando o mesmo sentido que a outra. A possibilidade de existência de um mestre ignorante parece absurda, porque os termos, abordados isoladamente, carecem de elementos capazes de os fazerem entrar em relação. Ora, se ao mestre compete a transmissão de um conhecimento, no qual ele formará um discípulo, supõe-se, dele, alguma sabedoria que o distingue de um ignorante - logo, a condição de existência simultânea das duas qualidades em uma só pessoa é impossível. Rancière nos dissuade desta convicção ao apresentar a história de Joseph Jacotot, dissidente francês que, por motivos políticos, exila-se na Holanda. Aí, incumbido da instrução de uma classe, depara-se com um aparentemente incontornável obstáculo linguístico, já que nem ele compreendia o holandês dos alunos nem estes eram versados na língua materna do seu mestre. Esmagado por essa dificuldade, cuja neutralização dependia de um aprendizado complexo e demorado de uma língua estrangeira, Jacotot é atravessado por uma epifania e engendra um método que se distinguia de todas as ideias pedagógicas de então: a necessidade de encontrar um elemento comum à inteligência de dois ignorantes. Assim, ao descobrir numa livraria uma edição bilíngue de um livro francês, ele estabelece esse objeto como a unidade fundamental de um conhecimento minimamente compartilhado. Induzindo que os seus alunos lessem a obra em holandês e a fossem cotejando na sua língua original, a fim de que a aquisição linguística se realizasse, em pouco tempo ele obteve progressos promissores da turma que, em quase sua totalidade, já era capaz de articular satisfatoriamente o francês. Dessa forma, mesmo sem estar munido do mínimo de conhecimento na disciplina a que fora incumbido de lecionar, Jacotot obteve êxito, realizado esta mesma experiência com outras matérias. O mestre, portanto, em vez de instruir, colocando entre ele e os alunos uma distância embrutecedora, que sempre se renova à medida que novas lições são ensinadas, colocou-se em patamar de igualdade com a sua classe, emancipado-a através da motivação de sua vontade, num processo de aprendizagem mútua. Em outras palavras, os alunos aprenderam sem que o mestre lhes ensinasse nada. Rancière pontua que este empreendimento, por mais extraordinário que pareça, é muito comum na formação da inteligência humana, não sendo possível existir alguém que não tenha aprendido algo por conta própria, já que a aquisição da língua materna, por exempo, está dentro desse círculo.

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Brutalismo. A ampliação da precarização do trabalho está também relacionada com o excesso de informatização aplicado aos processos. A gestão da performance produtiva através de indicadores e gráficos é um exercício brutal, totalitário, que pressupõe uma linearidade mecânica do comportamento humano.