sábado, 4 de junho de 2022

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Desista. Em seu pequeno conto Desista!, Kafka nos apresenta um homem à deriva numa cidade onde é estrangeiro. Cumpre ali por certo algum compromisso protocolar, talvez demandado por esta sorte aporrinhante de obrigação profissional inadiável, em que a ausência configura sobretudo negligência financeira; não obstante, prejuízo. Ao abrigo da rua, colecionando as precauções do forasteiro, confronta as horas marcadas no relógio de uma torre com aquelas inscritas no seu pulso. Para o seu desterro, apercebeu-se entre ambas incompatibilidade, quiçá pela alteração de fuso horário desta cidade em relação àquela de onde viera. O certo é que o susto turvou-lhe o senso espacial e já não mais sabia o caminho da estação ferroviária, na qual o trem que o levaria para casa poderia estar já em vias de saída. Como se quisesse voltar a se situar rapidamente, a fim de alcançar a tempo sua diligência, ponderou a um guarda que avistara numa esquina sobre como chegar ao seu destino. A contrapelo das expectativas que instituíra naquela autoridade, naquele homem entornado numa farda, à sua indagação fora retorquido com outra pergunta, esta fria, dolorosa, cruel, qual seja, "De mim você quer saber o caminho?". Ao sim evasivo do nosso homem exilado, o guarda, sarcástico e sem querer ajudá-lo, arrematou o colóquio sem conceder-lhe quaisquer contrapartidas à esperança projetada, sentenciando: "Desista!".
Este mesmo homem menoscabado pela autoridade constituída figura em toda a literatura de Kafka, a mercê de situações absurdas que alcançam sua existência contingencialmente. O deslocamento ao qual ele é compelido sob a metáfora de alguém que se vê frustrado em suas expectativas dirigidas ao direito encerra todas as pré-condições do investigador que se ocupa em buscar o fundamento da justiça. A nebulosa inaugurada nessa relação tortuosa com a autoridade, em que o apenado ignora completamente tanto o seu crime como os critérios que pesam sobre a escolha de sua sentença, reproduz a arbitrariedade ontológica de todo o processo, cujas razões, afinal, escamoteiam a ausência de determinações universais que as subsidie, resguardando-se ao sigilo dos operadores da lei os termos finais de instauração da justiça. O sarcasmo que adereça a resposta do guarda é a voz do direito encerrada na única modulação estética capaz de externar consciência total de si. Em casa, destino que se liga a toda estação, os sentidos se expandem sem refratar nenhum detalhe da paisagem, abraçando cada um de seus elementos com mesma intimidade que a representação se relaciona fundamentalmente a um conceito. A juris-diction do guarda estorva esse destino, preconizando o atabalhoamento do estrangeiro e o seu encarceramento num círculo de coisas que a todo instante lhe causam estranhamento.

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