terça-feira, 31 de maio de 2022

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Mestre Ignorante. O título desta obra de Jacques Rancière, O mestre ignorante, sugere um contrassenso, porque à figura de um mestre se ata, como predicado, a qualidade de sábio, a ponto de as duas palavras serem tratadas como homônimas, uma encerrando o mesmo sentido que a outra. A possibilidade de existência de um mestre ignorante parece absurda, porque os termos, abordados isoladamente, carecem de elementos capazes de os fazerem entrar em relação. Ora, se ao mestre compete a transmissão de um conhecimento, no qual ele formará um discípulo, supõe-se, dele, alguma sabedoria que o distingue de um ignorante - logo, a condição de existência simultânea das duas qualidades em uma só pessoa é impossível. Rancière nos dissuade desta convicção ao apresentar a história de Joseph Jacotot, dissidente francês que, por motivos políticos, exila-se na Holanda. Aí, incumbido da instrução de uma classe, depara-se com um aparentemente incontornável obstáculo linguístico, já que nem ele compreendia o holandês dos alunos nem estes eram versados na língua materna do seu mestre. Esmagado por essa dificuldade, cuja neutralização dependia de um aprendizado complexo e demorado de uma língua estrangeira, Jacotot é atravessado por uma epifania e engendra um método que se distinguia de todas as ideias pedagógicas de então: a necessidade de encontrar um elemento comum à inteligência de dois ignorantes. Assim, ao descobrir numa livraria uma edição bilíngue de um livro francês, ele estabelece esse objeto como a unidade fundamental de um conhecimento minimamente compartilhado. Induzindo que os seus alunos lessem a obra em holandês e a fossem cotejando na sua língua original, a fim de que a aquisição linguística se realizasse, em pouco tempo ele obteve progressos promissores da turma que, em quase sua totalidade, já era capaz de articular satisfatoriamente o francês. Dessa forma, mesmo sem estar munido do mínimo de conhecimento na disciplina a que fora incumbido de lecionar, Jacotot obteve êxito, realizado esta mesma experiência com outras matérias. O mestre, portanto, em vez de instruir, colocando entre ele e os alunos uma distância embrutecedora, que sempre se renova à medida que novas lições são ensinadas, colocou-se em patamar de igualdade com a sua classe, emancipado-a através da motivação de sua vontade, num processo de aprendizagem mútua. Em outras palavras, os alunos aprenderam sem que o mestre lhes ensinasse nada. Rancière pontua que este empreendimento, por mais extraordinário que pareça, é muito comum na formação da inteligência humana, não sendo possível existir alguém que não tenha aprendido algo por conta própria, já que a aquisição da língua materna, por exempo, está dentro desse círculo.

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