quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Estupro sentimental

As grandes reflexões se dão nas terças-feiras. Era novembro e depois da universidade. Conversas estagnadas sobre a demasia de agruras acadêmicas. O óbvio de todos os dias, quando se fuma e se ingere café coletivamente, travestido numa pseudo-disputa pela verdade através de incursões retóricas. Que ululasse os nossos rostos entediados, que padecesse a nossa vontade caso não nos déssemos à engenharia de juntarmos o óbulo dado por nossos pais. Mas os apelos da sede eram os que sempre gritavam mais alto, fazendo com que aflorassem aquelas grandes idéias. E, nesses momentos, alguém dizia: o que tenho paga duas cervejas. No intróito há sempre os reticentes que se deixam enganar pelas austeras datas do calendário, defendendo que terça ainda é muito cedo para as bebidas. São, como se pode notar, os mais presunçosos; carregam a certeza de que amanhã o sol lhes nascerá florescente e belo, e denegam que mesmo o minuto por vir é uma grande incógnita - um artífice do destino. Não, não temos controle nenhum sobre as nossas vidas, e é um grande erro protelar a felicidade para depois, para futuros de vento - o mais correto é consumarmos o que exige a nossa vontade agora. Soubéssemos disso antes, já ao nascer, teríamos construído os alicerces de uma vida mais radiante e objetiva. Porém, o jogo que se revela é esse, e todos os dados, como diz aquele que pensa, estão lançados. Então, corajosos, fomos ao bar. Como sempre, cheio. Pedimos a nossa primeira cerveja; os que fumam, sempre a tomam em companhia de um cigarro. Aí desfiamos as nossas línguas e falamos sobre assuntos vários. Mulheres, futuros, estudos, livros, as pessoas ao lado. Passamos para a segunda e derradeira cerveja. Os mesmos assuntos permutam de boca: o igual falado em termos e tons distintos. O álcool aquiesce os neurônios; a razão passa a trabalhar em ritmo auto-destrutivo; o instinto intercede por mais bebida; porém é chegado o fim pois não há mais dinheiro. Beberíamos, se fosse o caso, até de manhã, mas o capital coagiu, sem que fôssemos consultados, toda a nossa vontade de mais bebida. E somos obrigados a parar por já nos faltar o pecúlio. A bem da verdade, esse é um clássico caso de estupro sentimental.

Um comentário:

  1. ê cotidiano cruel e liso. Enquanto isso, vemos na fumaça do querido e áspero cachimbo, a compainha para a fulga casual dos estupros corriqueiramente sentimentais.

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