quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Uma vida sombreada

Fizeram-se atentos os meus ouvidos às frustrações do colega distante. Conversávamos, previsíveis, sobre a vida, ornamentando um fato baixo, passado conosco, com filosofias demasiado complexas: "Porque em Dostoiévski salienta-se a crítica da religião, e todos os homens não são senão ordinários". Até os trinta trabalhara nas fábricas, exercendo a desgastante profissão de metalúrgico, para suster as exigências físicas demandadas pelo corpo e, às vezes, locar um Kieslowski, que assistia, solitário e bêbado, em sua casa. A mãe, morta há não sei quantos anos, tinha acesa a chama da utopia presente em qualquer coração feminino, e por achar que podia, que faria brotar do lodo uma flor muito rosa, casou-se com o filho das capitais, educado sob o rigor das vicissitudes soturnas, escrava de um amor deficiente. O bêbado lhe fora um degredo - a macia pele de mulher delicada enrugou e agora, como na história fantástica, era feia. A fome é um incômodo vizinho que sempre nos bate à porta - e de sua boca, a depender das circunstâncias, podem sair as mais variadas exigências, as mais cruéis formas de crime. "Se tens um filho, e não pode dar a este sequer o de comer, serás puta, extrairás das esquinas o estofo para vosso barriga!". Pelo resto da vida, até quando fora enfim roída cruelmente pelo câncer, a meretriz contradisse todas as dádivas atribuídas a um Deus soberano, provando que nada, ao contrário do que se diz, pode mudar o amor. E o seu pai, sufocando nos anos 2000, também morrera, pois sabe-se que há, a exemplo do que dizem os crentes, um plano divino para cada vida. No entanto são quarenta anos e pensamentos vãos; as horas, racionalizadas, pesam e são mortas. O lucro obtido, as somas acumuladas, é o ímpeto assassino cristalizado em todas as entranhas do espírito - a vontade genocida de libertação da alma através do sangue que nunca será derramado.

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