sábado, 4 de junho de 2011

Podressência

A imagem fantasiosa que me chega aos olhos abertos como quem os tem fechados e delira muitos castelos enquanto dorme é a de mim mesmo, parado a uma esquina sob o sol dilacerante das treze horas da tarde, observando os primeiros transeuntes que se aglomeram em torno de um corpo morto, crivado pelos estigmas da decomposição. Antes, porém, dos curiosos, estavam já ali, a roer-lhe às partes em que houvesse entranhas, ratos e baratas, que preservaram-lhe contudo a região da face cadavérica,  parecendo descansar uma inconsciência em tom de cera.  Reluzindo os raios arremetidos contra si, o rosto concentrava tudo quanto é dúvida que pudesse ser concebida, o que não era suficiente para omitir quem o visse de admirar-lhe a beleza exagerada. Sobre o ventre branco e liso, elaborado com a mais cristalizada paciência por quem o moldou perfeitamente, resultando na mais romântica e harmoniosa obra de arte, as criaturas saídas dos esgotos, sem a pudicícia dos estetas, passeavam por cima, sujando-lhe o tórax e o peito de gotículas escuras, não dizendo do monumento morto a reunião dos elementos mais sublimes, porque tanto no corpo como nas criaturas só se sabia a irreflexão, ainda que nas pessoas houvesse o senso de distinção. E o sonho por aí acaba, pois o seu fim coincide com o momento em que sou chamado de volta à realidade por meu chefe Brandão, o mesmo que guarda em si todo o sentido da vida, para organizar livros conforme o conteúdo de suas páginas.

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