terça-feira, 18 de outubro de 2011

Kafka-Machado

A arte de narrar: O tema abordado pelo narrador não pode vir a ser interceptado por interpretações que fujam àquelas pensadas por si enquanto elaborava a obra. O processo, opus magnum de Kafka, caracteriza a rigor a presente tese: determinada pela experiência do escritor como advogado em um escritório, as desagradáveis burocracias encontradas no decorrer da narrativa podem se estender, apenas, a uma dimensão metafísica em que o leitor, interrogativo, dilui-se nas páginas do romance, fazendo do mundo jurídico a própria vida, e vê-se como um condenado que cometera um delito cuja natureza desconhece, sentenciado a remediar seu crime com a própria vida, e isso depois de já ter assumido a pele de Josef K – isto é, de ter-se tornado consciencioso para com o seu destino. Se o sucedâneo do enredo pensado pelo autor é a livre interpretação de seus leitores, o testemunho filosófico da obra, ainda que se trate de um trabalho literário magnífico, tende a se estagnar em virtude da mediocridade interpretativa dos incautos: embora mereça ser entronizado por ter deixado a questão da traição em aberto, Machado, com o seu belíssimo Dom Casmurro, foi vítima disso, sobretudo quando se constata a confusão que fazem entre ceticismo e achismo tendencioso. A menos que a confusão dos incautos tenha sido uma possibilidade calculada friamente por si – o que, devido a sua genialidade como contador de histórias, é o mais provável -, cabe a ele, se não, esta única ressalva: o brasileiro só entende as coisas quando lhas desenhamos.

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