sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Antropologia nietzscheana

Especificamente no século 19, recrudescendo os ataques que alguns filósofos vinham desferindo à religião enquanto unidade de conhecimento e horizonte de vida, a filosofia genealógica de Nietzsche, seguindo um caminho similar, acrescenta àqueles alguns elementos inovadores e talvez mais letais, elencando como principal propósito a derrubada de ídolos.

Ao identificar a moral como um problema e tudo o que se escreveu em termos de filosofia como exemplo caricato da negação da vida, o filósofo tenta contornar tal forma merencória e pudica de pensar o mundo destacando que ela, enquanto terreno onde tudo é medido segundo a sua essência e o seu valor moral, é, entre outras coisas, também uma espécie de disfunção fisiológica cujos fins são, quase sempre, a negação do sujeito como repositório de instintos. Ora, no capítulo dedicado a Sócrates presente em O Crepúsculo dos ídolos, trazendo a punho o seu martelo, a ironia levado a cabo por Nietzsche contra o precursor de Platão é certeira, e o atinge talvez no seu momento mais áureo: quando de sua morte, Sócrates, tornando-se cônscio da dívida que tinha para com Asclépio, denuncia-se grato pelo prazer decorrente da morte próxima, enxergando o fim como o oásis no qual a sua alma pura e inteligente passará a descansar dos desassossegos da vida terrena. O dialético e melhorador do mundo então fenecem, reservando à posteridade o que escondia em si de mais íntimo: ser ele, nas palavras de Nietzsche, um decadente.

Quando vislumbra no cristianismo os traços de um “platonismo para o povo”, é evidente que o pensador alemão alcança nessa religião fundamentos próximos aos da linha socrática de pensamento, um emparelhamento que torna ambos epistemologicamente simétricos, urgindo pois que aí também sejam dadas marteladas. E não fica por menos: apontando para a estratégia cristã de deslocar o homem de sua existência concreta e de tudo aquilo que a circunda, Nietzsche identifica no cristianismo como que o germe de uma doença que, ao afetar o indivíduo, condiciona-o a não mais enxergar valor nas coisas de baixo, tapando-lhe os poros para as sensações terrenas, porque elas, além de fugazes e sem sentido, também são imperfeitas.

A alternativa que lança a essa avaliação, é válido que se diga, deriva de sua própria experiência como enfermo: na ausência de meios que o curem da letargia que lhe assegurava severos transtornos, passa a amar sua doença incontornável. Ora, usando as palavras de Sartre ao se referir à feiúra de que era dono, em Nietzsche, a contragosto de qualquer pretensão que pudesse ter acerca de si mesmo enquanto projeto a ser completado mediante a presença do futuro, a barbaridade do destino parece ter realizado o próprio sentido da vida, dado que esta, sendo mediada pela contingência e pelo devir ininterrupto, assalta-nos à consciência, depois de testada e madura, com igual ou maior tragicidade, fato para o qual as religiões tornam-nos quase cegos. E é aí onde tem gênese a filosofia afirmativa de Nietzsche: descartada a má-fe de não se apreender a vida em sua face ontológica, abre-se mão de delegá-la a um deus limitado ao espaço da especulação e da possibilidade, tornando-se para o indivíduo, em sua integralidade mesmo, responsabilidade, fardo... – trabalho de Sísifo!

Um comentário:

  1. Friedrich Nietzsche foi um Übermensch tal como procurou na vida, uma pessoa que raramente teremos o prazer de ver nessa terra novamente.
    Preferiu viver em seu próprio mundo ao compartilhar, no fim da sua vida, a sabedoria que ainda lhe restava.

    Parabéns pelo texto companheiro e conterrâneo.

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