segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Notação sobre o purgatório

"A sanidade mental é para os fracos; é preciso humilhar o intelecto!" Barão Vermelho

Perdoa-me, Senhor, sei que tenho me portado com desdita e despeito diante da sua grande generosidade. É tão imenso o seu amor por nós, seres humanos, que o reflexo da sua mais elaborada criação, os seres vivos, incandesce aos nossos olhos e somos incapazes de olhar-nos uns aos outros. Dissera-nos para amarmo-nos entre nós como nos amara, tendo sacrificado o seu próprio filho em virtude do nosso bem, mas não temos feito nada disso, infelizmente. Muito pelo contrário, transformamos o paraíso, que é a Terra, que nos fora concebido pela vossa grandiloqüente graça num descambado onde adventamos as nossas mais lúgubres distopias, as nossas frustrações individuais que vão de encontro ao bem universal da humanidade e, veja no que deu: confabulamos, agora, em filosofia e arte, com palavras difíceis e símbolos extravagantes, contra o excelso poder que ostentas, e reduzimos a vida a quase nada. É lastimável que tenhamos chegado a isso, facultando pouca importância às catástrofes que se reincidem em cada parte do globo, alimentado com a poeira das vicissitudes o grande desvão das nossas almas. Agora pluralizo a minha voz e peço perdão, também, em nome de todos os meus irmãos que padecem pelo crime que, desde pequeno, tenho cometido. Não posso citá-lo, pois não vem ao caso e ele não tem nome, é conseqüência de nossa atividade laboral e do nosso instinto lúdico. O que seria de nós se não nos fosse deferida a faculdade do sorriso? Carrancudos seríamos, muito mais do que somos podendo sorrir, e justificável seria o fazer de reprimendas à obra complexa que, com a sua matemática celestial, compusera. No entanto, prodigalizaste Bach, essa pequena maquete do que é o senhor, com a dádiva da música e lhe incutira o poder de criação do Contraponto. Ora, Senhor, não bastásseis deixar tal artífice para a música que, ora se enleva e ora se amorna, trazendo à luz do nosso pequeno conhecimento a sublimação por notas musicais e fugas? Não. Fizera da nossa realidade uma sinfonia contrapontista, quando mais fácil seria facultá-la da qualidade de um noturno breve e poético, onde o ritmo discorre leve e em tom delicadamente consensual. Dera aos nossos olhos muito mais do que as nossas cabeças factuais agüentam, fazendo deles espelhos onde se refletem críticas e os impossibilitara de meramente enxergar sem ver. Devo-lhe agradecer, Senhor. Muito bem nos dotara o espírito com o a priori da negação e tudo que dizemos e pensamos são reações motivadas pela instabilidade de vivermos sem que possamos deixar de entrar em detrimento com o espaço aonde nos localizamos. Facultara-nos também o poder da razão e, por isso, vivemos embebidos na decadência do que é a arte, o que nos faz seres miméticos e viciados na contextualização para que possa vir sempre à tona todo o corpo da prova. Acreditaríamos, por acaso, que são feios o poder e a guerra se destituídos fôssemos da inteligência para criar uma arma e da ganância para aviltarmos as relações de troca? Haveria um homem instituído do poder da pintura se contentes fôssemos nós em apenas enxergarmos a natureza? Dir-se-á da literatura apenas um objeto de gozo próprio onde se é reescrita apenas por diversão a realidade? Acredito que, se conformidade houvesse, existindo em tal mundo uma possibilidade de arte, esta seria desenvolvida somente dentro de nós mesmos. Fora preciso que se demarcasse paredes para pontuarmos, cartesianamente, o que descoberto fora na atividade cotidiana, e demos a isso o nome de pinturas rupestres. Victor Hugo precisou ser humanista para que observássemos que, dentro da degladiação da vida, há os injustiçados que, quando livres da galé na qual fora remetido, transforma-se num homem muito mais preso do que quando estivera por trás das grades. Goya tivera de enlouquecer por querer mostrar, através de sua pintura sombria, quão inspirador e impressionista é o nosso mundo. Schubert compusera o amor em tempos onde os homens se matavam por ele. E todos nós, que de alguma forma somos artistas, vamos encorpando a espiritualidade das nossas personagens e damos cabo, assim, desse grande teatro sem cor que é a vida. Perdoai-nos, Senhor, mas o pecado é todo seu.

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