terça-feira, 27 de abril de 2010

Meditação sobre a escrita

A arte de escrever deve suscitar dores profundas. Dores, mais do que físicas, manicomiais, porque a escrita, tendo em vista o seu caráter especulativo e 'indutório', não pretende dizer nada que não seja a denúncia, não deseja ser nada que não um fim para si mesma, não tende a refletir senão os cacos de um vidro que, a cada instante, se esmiuçam e são levados com a força do vento. Assaltado, certa vez, pela felicidade de uma colega minha, que julgava a poesia um instrumento nostálgico e totalmente antitético aos nobres sentimentos carregados por si no seu coraçãozinho alegre e mole, esbocei-lhe um sorriso que, mesmo podendo ter parecido à ela sarcástico, só se fez presente no meu rosto por querer lhe parecer o mais sincero. Ela me dizia que o tom nauseado dos poetas não lhe apetecia, posto que estes senhores, muitas vezes desocupados e bêbados, só sabiam cantar a vida como a mulher extasiada em sua luxúria que grunhe, estridentemente, os seus gemidos no ato do coito. Eu, no meu papel de poeta, e tão estridente quanto qualquer um que faça versos, mesmo não concordando de todo com essa sua acepção um tanto precipitada a respeito dos trovadores, não pude deixar de notar qualquer coerência nesse seu discurso muito próprio à juventude do século 21. Há coerência no que fora dito por ela porque a poesia, em conta do seu papel 'figurador' da realidade, logo, por assim dizer, gerador de uma perspectiva filosófica dos fatos, abordará, tal como os sistemas de pensamento, casuísticas centrais para que se possa chegar a um escopo, à uma libertação do espírito através do excedimento da razão dada por intermédio da linguagem. No entanto, convém que se diga, a demonstração nas formas dadas se dará de maneira distinta. Se na filosofia parece que os dados são coletados e arranjados num quebra-cabeça gigante; em poesia, contrastando, percebe-se que esses quebra-cabeças e esses dados (que são os fenômenos tanto naturais como não) são, de certa forma, desarranjados, desconstruídos para que, em vez de uma síntese, se possa chegar à uma espécie de comoção homérica, fazendo com que pulule do peito nós fechados com cólera profunda. Portanto, que se perceba, a nostalgia não pode ser encarada como fetiche estilístico, de modo que o poeta se contorça, com desmensurado pateticismo, para criar uma dor ou uma revolta que não existem. Embora isso, há, entretanto, os que aderem ao falseamento. Contudo, se formos julgar a questão levando em conta as contingências que se apresentam com freqüência mínima, concluiremos que não há sociedade senão o caos no seu estado mais puro. Pois bem, sejamos científicos. Tentara-se até aqui se diferenciar poesia de filosofia, e estabelecer os critérios que faz uma divergir da outra. Para que não esqueçamos, posso resumir que o que define cada uma dessas não é propriamente a qualidade textual utilizada, mas os fins a que chegam cada uma. A primeira quer erigir, a segunda quer derrubar. Esse axioma, às pessoas críticas, soçobrará, lhes arrancará boas doses de texto, e quem sabe até mesmo eu não me canse com o verbalismo vindouro. Mas, advirto: farei o máximo para ler as contestações. Retomemos, pois, o que nos interessa: a escrita que deve suscitar grandes dores. Para tanto, já que concluímos que a nostalgia poética não é ornamento ou truísmo, demos um passo adiante. Ora, por qual sentimento estaria Kafka possuído (sim, possuído) quando cogitou a possibilidade de fazer com que um homem, revestido por suas carnes e pêlos, acordasse mutado num inseto indeterminado? Confesso que seja um pouco difícil imaginar à que graus, em tal momento de virtuosismo, ferviam os seus pensamentos, sobre quais plagas desvairavam o seu eu, mas, como diz o Edward Hopper a respeito do sentimento de solidão transmitido por suas telas, "não é legal para quem está sozinho". Mesmo que se diga que querer fazer do autor de uma obra, onde se é esboçada a frustração, um frustrado seja, sobretudo para os formalistas, um erro, tampouco nos é acertado denegar que ele seja positivamente um frustrado. Mais do que sapiente, é até lógico que tomemos cabo desse partido, uma vez que, assim penso, só conhece as dores da fome quem dela já foi vítima. E digo mais: talvez a frustração que não queremos remeter ao nosso literato seja muito maior do que aquela que só pretende heroicizar. Todavia, isso não vem diretamente ao caso. Acredito que, em Kafka, se deu um fenômeno distinto, talvez os seus olhos foram acometidos por uma imagem ao mesmo tempo singular e universal, acredito mesmo que possamos atribuir o insight que deu gênese a Gregor Samsa à afeição do seu criador ao nada. Somente uma alma que aspira o nada, e cônscia integralmente do absurdo, pode prodigalizar tais feitos, pode esculpir sobre a matéria concreta os mais variados traços do espírito, dando forma ao que é abstrato, oferecendo um mapa que destrincha uma alucinação a alucinados que até então estiveram perdidos. Julguemos, assim, Kafka como um vanguardista que, embora podendo não ter sido o que viu essa luz primeiro, foi talvez o que teve coragem de contá-la de início, sem lhe amputar sequer um traço, o que poderia lhe amputar um pouco de sua angústia. Sucedendo Kafka, houveram outros; dentre eles, o Beckett que, assim como seu mestre, faz de casos absurdos, palavra que representa quase um chavão, casos praticamente insólitos. Mas Beckett fica para uma outra hora.  Para que pudesse ficar concluído o que tem a se dizer sobre as dores que devem causar a escrita, eu seria prático se pedisse que começassem, desde já, a ler Fernando Pessoa, mas como o pequeno ensaio tem como fim servir-se de muleta, caberá aqui algumas palavras minhas sobre esse poeta português único. Pessoa é um caso simplório na literatura, pois, além de extremo, ele é também cansativo. Sim, cansativo; mas cansativo no sentido de que, com ele, a vida parece levar um nocaute ardiloso, onde a tontura se mostra tão grande que, olhando-se para qualquer lado, tudo parece se mostrar turvo e irreconhecível. Poderíamos evocar algumas passagens, trechos de Álvaro de Campos e Bernardo Soares, porém, para que não se torne cansativo o texto, melhor que se faça isso por conta própria. Há em Pessoa uma auto-aniquilação, evidenciando-se um eu que cai no chão, quebra-se, e estas partes se digladiam entre si. As dores dessa queda, se se lê com coração, podem ser sentidas na alma, de tal forma que as palavras de Pessoa se tornam intransponíveis e toda a poesia restante parece evasiva e bestial. Se vemos, no século 19, pensadores, tais quais Kierkegaard, Nietzsche, Dostoiévski, que criticam o modelo de síntese das filosofias racionais, e no século 20, com existencialistas da estirpe de Camus, uma crítica similar, no entremeio destes dois séculos, mais para o 20 que para o 19 porém,  há esse tal poeta português que passa quase como uma sombra pelos corredores das idéias. Se Albert Camus, no Mito de Sísifo, diz que nós, tal qual a personagem central do mito, devemos aceitar a nossa pedra, levando-a ao alto da montanha para, então, vé-la tornar a cair mais uma vez, Fernando Pessoa, com o seu heteronimo-mestre Alberto Caeiro, nos mostra que mesmo a aceitação dessa pedra faz parte de um mundo descritivo, onde a morte nos serve de farol e tudo que tenta explicá-la é, assim como o deus de Feurbach, uma espécie de projeção antropológica, um cômodo reconfortante - similar ao nosso quarto - que desejamos para descansar a nossa existência que se cessara. Com isso, contudo, quer-se mostrar que a poesia de Fernando Pessoa, diferente da gnoseologia ao mesmo tempo pessimista e humanista de Camus, aponta para a impossibilidade da própria gnose já que, mesmo com o bucólico Alberto Caeiro, que faz daquilo que se lhe apresenta aos olhos uma imagem que se auto-explica, percebe-se um tédio inequívoco como pano de fundo da vida. Nesse ponto, para que fiquem claras as intenções, nos deparamos, embora as idiossincrasias de cada um, não com a aceitação de ambos ao mundo que devemos aceitar, mas a não conformação com o que ele tem sido. Ora, qual motivo levaria Camus a escrever que devemos aceitar a nossa pedra, e Pessoa a dizer que uma flor é uma flor e pronto senão o desejo de se validar o próprio ponto-de-vista?, o que, todavia, acaba por denegá-lo indiretamente, uma vez que não se aceita a pedra e se tenta explicar o que é a flor. Concluímos, com este último exemplo, que o fim de toda arte e de toda a filosofia é, se não destacar a complexidade estética da própria obra, abrir caminhos para a felicidade, expondo novas rotas a serem seguidas a fim de que o homem não se torne vítima da sua inconstância, à deriva nesse grande oceano de arbitrariedades. Por isso que escrita - ela não deve, ela é - suscita dores profundas, por deixar com que sua proa investigue as águas novas e os lugares mais distantes. A dor, na escrita, em relação às descobertas, é quase nada.

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