quarta-feira, 14 de julho de 2010

Elogio do pai (rascunho)

Se ele não fosse tão velho, e já não conseguisse compreender mais nada, devolveria o que me deu numa vasilha ou enrolado num papel higiênico aromático. Não o vejo faz mais de dez anos, e no decorrer de todo esse tempo que tenho me mantido afastado, caso o ódio que carrego no coração não houvesse criado cristais como o açúcar que é deixado por longo período dentro da geladeira, talvez lhe fizesse uma visita em sua casa, o encontraria para recuperar o que apodreceu e extraviou dentro de mim, algo que pudesse deixar a voz com que sussurro essas frases mais grossa e me fizesse aprender, finalmente, a falar com verdadeira objetividade para os outros, escasso do tom lacônico e idílico com o qual a mim mesmo me falo. A névoa encobriu os sonhos, e, ao lado do sofá onde me sento para ver novelas e telejornais, sobrou a minha mãe que se queda paralizada diante da felicidade e da utopia como se fossem duas coisas impossíveis ao seu tato calejado; que na caligrafia interiorana da fome e da ignorância só aprendeu o verbo ríspido, as sílabas vagas sobre uma vida que, mesmo querendo e me forçando às suas pretensões acerca da verdade, não pudera inocular, e, sem que soubesse, subjugou-a à escravidão.

Sobre o que falo são poucos os que entendem. Não pretendo que me olhem com os olhos da pena e da caridade, ou que tampouco façam de mim a imagem senil de um santo católico. Pois, diferente do que possam estar pensando, sou menos triste que sórdido.

Da sua fisionomia já nem me lembro; o retrato daquela felicidade de fim de ano, no qual eu o abraçava e toda a família formava uma grande linha horizontal, já nem tenho mais. Não sei que fim o levou. Durante os recentes cinco anos afastado de casa, quando ainda me sentia compungido pela saudade e vitimado pela convivência, procurava com certa freqüência essa fotografia e, até quando a tive em minhas mãos, deixava-me a perscrutar cada rosto reduzido ao 3*4 e sorridente, tentando buscar naquele feixe retangular de cores e gestos a glosa que pudesse definir o que foi, o que estava sendo e o que seria a minha vida. Então, derrotado pela carência, fazia do afeto um vilão e guardava a foto tentando fugir dele. Um dia, assaltado mais uma vez por essa vertigem, a procurei em todas as gavetas dos móveis presentes em cada cômoda da minha casa, e não a achei. A recordação do meu pai agora dependia de mim, do quanto me esforçaria para revê-lo com perfeição na memória. Mas por que me esforçaria se quem o abandonou não fui eu? Se quem foi amputado, já durante a infância, não foi ele?

Chegava, então, o momento da minha vingança, o instante no qual se apagaria os últimos registros da sua prole. O tempo, em semelhante ocasião, nos punha frente a frente, e me dava assim a oportunidade de acertar as contas da mesma forma que ele, quando partiu, me humilhou: daria-lhe, na mesma moeda, o esquecimento. Pensamento inglório, todavia. De afeição tímida, o que sentia por meu pai se adornou de traumas latentes, sobretudo quando cheguei aos vinte anos e comecei a ver as coisas de maneira mais esmiuçada. Era carência de afeto ainda o que sentia, mas, junto a isso, uma sensação opressora, que parecia me comprimir pelos lados à alma, não permitia que eu me vertesse a pieguice e me entregasse, como um palerma, às fraquezas, ajoelhando-me, à maneira dos celibatários, diante das reminiscências do coração. Daí em diante o ódio; as cores que queria para pintar o seu rosto cujo o qual, volta e meia, sempre me assombrava e ainda hoje me assombra, tal um fantasma que vive nos olhos.

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