segunda-feira, 12 de julho de 2010

Em razão do vômito

- Posso vomitar na sua calçada? - assim, sem razão, o rapaz barbudo se direcionou como um louco à tia velha que gastava tempo aguando a varanda prendada.
- Por que não diz logo que isso é um assalto? - fez do costume uma razão, e quase des-justificou o disparate recebido.
Desfeito dos trastes compostos a partir daquele tiro à queima roupa, o rapaz salientou novo discurso para validar o descarrego da sua náusea no piso áspero.
- Ora, mas isso é um despeito ante a categoria do que desejo. Não me curvarei diante do senso-comum. Quero dar substância ao seu ofício e fazer com que você não seja vista por má.
- Me desculpe - amenizou o verbo agachando-se para alcançar a válvula da torneira - se entendi, você é um dos que se vestem de preto e acredita, juntamente com os do seu grupo, ser consciente dos parâmetros? Não é isso?
Sorriu, seco e sem graça, ao perceber o argumento polido, desfraldado de um suposto cérebro lógico.
- Não, minha senhora, antes me fosse concedida a mudez eterna a ter a natureza da fala. Pouco admiro o verbo, sobretudo por desgostar das circunstâncias insalubres a que ele nos leva. Mas se falo, não é para parecer sociável; muito pelo contrário, é somente por cultivar o egoísmo.
- E como você o justificaria vomitando na minha calçada?
Pos a mão sobre a extremidade do queixo, deixou-se pensar, e, filósofo, raciocinou uma frase.
- As evidências são claras. Pensei que fosse mais inteligente, tanto que não olvidei o seu cérebro.
Fez da filosofia uma contramão - refletiu imediatamente a velha - Como lhe dizer isso sem que o aflija? Não, não sei, e no mais, já de início, ele fizera o mesmo ao me perguntar se poderia vomitar na calçada. Mas sou uma velha e sei que ele, na verdade, está triste. Serei branda.
- Você faz das palavras um quebra-molas, quer que todo mundo consiga atravessar o estorvo imposto na via da discussão. Sendo franca, não pude enxergar a clareza...
- Suas objeções parecem anúncios de fuga. Por favor, não se acue em levantar a bandeira branca e considerar a possibilidade da derrota. Caso eu tenha sido mais razoável agora, é só me liberar para que eu dê início ao ato.
A velha soltou risinhos insossos e, com olhos insanos, vislumbrou o céu escasso de sol e nuvens. Perguntou-se por onde andavam e não concluiu um destino.
- Eu não entendo: primeiro o vômito e depois a razão...? Não se justifica: o pútrido, nesse caso, encontra-se em que plano? No primeiro ou no segundo?
- É um adorno.
- Sim, não descartei a sua proficiência poética, o seu poder metafórico. Mas, me diga, por que ataviar quando pode-se valer da franqueza?
- Porque não há diferença entre ela e o vômito. Os dois causam engulho, não acha? Apontar o vômito é fazer com que a franqueza seja menos franca. Só isso.
Perplexa diante da fecundidade, ficou, em pedra, paralisada defronte do rapaz categórico e barbudo.
- Sendo assim, se compreendo, o vômito pode ser mais limpo que a palavra por alvejar, em seu papel de adorno, a razão. Nossa, quem diria... o vômito como uma ferramenta da liberdade e da compreensão!
- São os apanágios da arte. A integridade da sua calçada, tendo se safado do meu excremento ácido e viscoso, se deve ao absurdo, pois ele, e mais ninguém, nos conduziu às luzes do entendimento. Estamos agora conciliados. Até outra hora que nos permita esse mesmo acaso.
Seguido pelos olhos da senhora, o rapaz desapareceu no dobrar da rua.

Um comentário:

  1. Isto é como dizer que de uma simples palavra simbólica pode gerar uma ação concreta.
    Por vezes, a resposta é muito mais simples do que a própria pergunta.
    Um texto nada normal, mas com um grande significado.

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