sábado, 3 de julho de 2010

Fogo árduo

eu tento pensar nitidamente, mas a minha casa se desmancha em labaredas cruas de um fogo árduo. e vejo a minha mãe ali, deitada na grama seca, os olhos flagelantes mirando, sem pausa, o céu nublado de nuvens infinitas. não digo bem o que sinto, porque a fumaça arde nas vistas, e a imagem do meu caderno encardido nas minhas mãos sujas de cinzas, único objeto incólume ao incêndio, me desperta uma dor desesperadora, cujo desconforto acho que é na alma. seria mais conveniente a morte. queimarmos eu e minha mãe, de modo que não sobrasse o pó do que fôramos nós. mas, não, viera-me aos músculos uma tal coragem, um amor desmedido, que tive que enfrentar o fogo e combater sozinho, vendo quadros, roupas e objetos, tudo que agora só é possível na lembrança, se roendo em chamas alaranjadas. e essa mulher velha, de 50 anos, parece-me muito triste, porém não consegue me dirigir as palavras, pois é muda, só enxerga, enxerga, enxerga e não fala, não expressa em verbo nada. - fale alguma coisa, mamãe - quem pôs tanto fogo no nosso lar antigo. mas continua muda, rosto empalidecido pela luz de um dia sem sol, o mesmo que, envergonhado, escondeu-se por detrás das nuvens e, dissimulado, gargalha o nosso mal em gozo. ela suspira "huns": hum... hum... hum..., e eu não sei o que diz, e também não quero compreender, já que não basta o que se fala para trazer até nós ajuda; e estamos tão longe, na pequena chácara circunscrita por mato alto, que seria sem razão exceder a lucidez da casa trágica gritando, exclamando horrendos socorros. e assim ela queima: os seus pedaços seguem voando pelos ares, até que desaparecem.

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