quinta-feira, 8 de julho de 2010

Crônica de um homem angustiado

O rapaz breve chega à farmácia, alcança o balcão, escora os cotovelos sobre ele, e pede ao atendente que lhe traga morfina. O senhor negro, funcionário longínquo da farmácia clara, diz que não é possível satisfazer o seu pedido, pois não há, em estoque, o medicamento em questão.

Então, meu caro ancião, que fazer para morrer sem dor? Não suporto a vida, mas tampouco quero definhar com a sensibilidade aviltada. Rezo aos céus que um raio me cubra com um choque mortífero, de tal modo que a minha alma, estando agora desamarrada do corpo, possa sentir-se liberta para vagar, solitária e confusa, pelos cantos mais desabitados do universo. Desejo as tardes vazias como um sedento que mata ou morre por um pequeno copo de água. Não basta que eu, anunciador realista deste pecado, em que, por infelicidade, natimorto finjo a alegria, a tristeza e os sentimentos, e a que chamo vida, escalpele demais os cílios e, veemente, defenda ter mais visão, como se o abrir exagerado dos olhos justificasse a minha relevância perante os outros. O que vejo é matéria, e à parte a minha ignorância sobre as suas propriedades mais profundas, as quais os cientistas e filósofos julgam estudar e até compreender, as coisas contra as quais me deparo são todas elementos difusos e desconhecidos, tal planetas à deriva num incalculável universo negro onde rodassem vários astros sem ter por quê. Mas basta, meu caro, que se finde esse meu palavrório! Embalde escarrar as minhas angústias quando só eu e mais ninguém sou cúmplice de um crime particular e por muito hediondo. Mesmo que me despisse das vestes que me cobrem e lhe mostrasse, sem vergonha e pudor, as minhas feridas, por que sofreria você pelas chagas que em mim se abrem? Afinal, que há de poesia na dor do outro? Eu preciso morrer, morrer para mim, mas que fique, pelo menos, a lembrança dos outros em relação a este transatlântico em mares de pedra que, recém construído, para tão longe já parte. Uma sonolência íntima, uma visão literal do futuro, um riso por tudo e sobre todas as coisas! O desabar sem tréguas da vida em oceanos turbulentos, como se o corpo fosse feito de ferro e aguentasse a tudo, de tal modo que o rastejar com a carne coberta de feridas em sangue não doesse e só permitisse o prazer ilimitado, que antecedesse a consciência, sendo, portanto, mais nobre e digno que qualquer razão.

Os seus sintomas, jovem rapaz, transcendem o poder da farmacologia. Não há remédio que possa curar-lhe da podridão do adorno e da alegoria; para tudo se faz uma metáfora, conseqüência de se pensar que os objetos não são claros e que há mais do que isso. Mas não há: é só isso mesmo. Quando foi diferente? Nunca. No decorrer de todos os séculos houve os que sempre se dedicaram as questões do espírito. Tudo em vão, tinta de caneta e papel gastados à toa.

Não aceito que seja só isso, e que você, pequeno funcionário de uma farmácia clara, seja cônscio do que é a vida. Se fosse ao menos um poeta ou um filósofo... Mas, não, o que o homem dos remédios pode me ensinar? Em que referenciais se apóiam essa sua razão? Se há verdade, tenha certeza, ela não pode se resumir às suas palavras sem polimento, pois ela é impossível a um homem que não sofre em excesso e escasso da ciência poética. A verdade da vida consiste no sofrer; tanto mais sofremos, mais próximos da verdade ficamos. Não há prevenção sem que haja a agrura. É preciso sofrer sem limites!

Pela porta envidraçada, defronte da qual a avenida larga mantinha um ritmo acelerado desde as primeiras horas do dia, o louco suicida sai, com seus gestos largos e a tez suada, e vai talvez procurar uma outra maneira ou uma nova farmácia, algo que possa garantir-lhe uma fuga.

Um comentário: