sexta-feira, 9 de julho de 2010

Relatos de um homicida

Eu, particularmente, gosto de ser visto como repulsivo. E se você considera o meu crime tão cruel, senhor delegado, é somente devido a essa minha preferência estética. Quem me concebeu não foi Deus, foi o diabo. Lembro que quando nasci - única lembrança que carrego dessa minha fase -, o meu pai espiritual, Satanás, chegou junto ao meu leito, e com o seu rosto sereno e paternal, disse-me jovialmente as seguintes palavras: "Vai ser atroz na vida, meu pequeno anjo obscuro". Eu sei que o senhor, do alto de suas convicções e positivismo, não acredita no que estou lhe dizendo. Isso é até lógico, uma vez que as pessoas, mesmo adorando a Deus e temendo Satanás, ao serem relatadas de casos como esse meu, simplesmente não acreditam, mantem-se indiferente à pontualidade do que estão a ouvir, e às vezes, coisa que me aborrece muito, caem nas gargalhadas, chegando mesmo a pilheriar de mim. Mas tudo bem, não nasci para convencer ninguém de que sou uma semente do mal e fui concebido por forças negativas; nasci, como lhe disse, para fazer o mal, e até já aceitei esse meu fardo, posto que quando comento algum crime, sobremaneira os mais vilipendiosos, como o esquartejamento ou o estupro, sinto um prazer que é, a um só tempo, humano, desumano e divino. Ou seja, o que esses atos me proporcionam, senhor delegado, mais do que experiências estéticas demasiadamente interessantes, são convicções mais detalhadas acerca das minhas próprias convicções e das convicções universais. Na verdade, meu nobre, não posso ser enquadrado na categoria dos réprobos; considero-me, sim, um filósofo empirista e marginal. Você pode estar pensando que as minhas atitudes não passam de atos severos que suprem necessidades individuais; em outras palavras, você deve estar pensado que me resumo a um só adjetivo: egoísta. Não, senhor delegado, não sou um egoísta, pois, além da observação, o meu método exige de mim experiências diretas, onde, de mero interlocutor de sensações, passo a ser o agente que é acometido e que sente na pele as sensações que sempre observa serem despertadas nos outros. A propósito, todos deveriam ler Sach-Masoch e aprender novas formas de amor. Só que a educação não cumpre com o seu papel e reduzem-nos, complexos seres humanos, a linhas insossas de uma eterna e idílica luta social. Homens como eu, mais cruéis que qualquer imperador, deveriam ser matéria de prova, porque dentro de nós, os gênios, há mundos não elucidados que precisam ser descobertos; há genes que apontam que nós somos só filosofia. Vivo em função do crime, e sou um criminoso em virtude de causas transcendentais e da razão. Todavia, tudo isso é descartável, não constitui um pensamento encorpado para que forme uma boa síntese. Portanto, voltemos aos fatos. Você me perguntou por que agi de forma tão cruel nesse crime. A resposta é simples e, para falar a verdade, não deixarei de ser, em nenhum só instante, o mais franco possível. Como já deu para perceber, esse não é o meu primeiro ato hediondo - e, se o meu pai espiritual quiser, não será o último. Já pratiquei crimes muito piores que este em questão, por isso, pelo menos para mim, não há nenhuma relevância na forma como essa vida, findada por minhas mãos, foi tirada. Encaremos esse assassinato como uma fatalidade. Pois foi mesmo uma fatalidade, já que este homem desprezível resolveu atravessar meu caminho num momento em que estava chateado com algumas coisas. Posso lhe contar com o que estava chateado: com a insignificância da vida. Ou seja, estou chateado a toda hora; se fosse possível, mataria todos que atravessassem o meu caminho por estar sempre, como já disse, chateado com a insignificância da vida. Ele vinha andando pela mesma calçada em que eu estava, só que ele vinha na rota contrária, em direção mim; o modo como caminhava era extremamente humano. Lembro-me que quando o avistei pela primeira vez, quando ainda se encontrava próximo ao começo da rua, senti um nojo profundo da sua forma de caminhar, o que fez com que eu cuspisse uma grande golfada e desejasse, de súbito, matá-lo para garantir a higiene desse mundo podre. Eu não estou me contradizendo: gosto de ser repulsivo em efeito contrário às convenções humanas; sou um porco filosófico. Então, no momento em que ele se aproximou de mim, desembainhei da cintura uma faca vietnamita que comprei numa loja especializada em armas dos EUA e, por conseguinte, passei a lamina, com cautela e maciez, na sua garganta. Como a rua estava pouco movimentada e, ao perceber o rosto lívido do cadáver estirado no chão, não gostei do resultado e comecei a sentir mais asco a ele, agachei-me e, puxando os seus cabelos de modo a esticar o pescoço cindido, voltei a passar a faca sobre a região atingida para lhe arrancar, de vez, a cabeça. Não fique assim, senhor delegado. Requintes de crueldade... Cruel é a vida em si. Foi só isso que aconteceu.  

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