sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sobre pássaros e ninhos

Não falaremos perante a mesa, porque a hora de comer é sagrada. Decretou o senhor de cinquenta anos, levando os dois antebraços fortes à superfície da mesa, para que as mãos, formando um círculo em volta do prato, se encontrassem e, assim, dessem início ao jantar com uma breve oração em agradecimento a Deus pela vida, que lhes era boa, e pelo alimento, que lhes era farto. Segundo o costume da família, o patriarca, figura rígida e consciente dos problemas da casa, após as palavras iniciais no momento da ceia, a fim de aclimatar a todos e arraigar em terras mais profundas as grossas raízes da tradição, deveria eleger alguém que puxasse o coro dos agradecimentos e conduzisse, como um instrutor que norteia os seus cegos, as orações. Levantados os antebraços para serem levados à cabeça, de forma que as palmas das mãos pudessem formar um apoio que se fixasse à sua testa, num gesto de meditação profunda e distante, talvez começara a pensar em quem seria o escolhido ante àquela situação. Todos permaneciam circunspectos e imóveis nas suas cadeiras. O lustre encimado sobre a mesa, ao refletir a sua luz amarelada na louça branca, adornava com um brilho incomum os rostos dispostos em círculo e atentos ao homem recluso na sua meditação. As frutas túmidas, bem como os talhares e o que se encontrasse sob o reflexo da luz, também emitiam o seu brilho, e fulgurando uma cor vívida e  fresca, convidavam todos a lhes cearem. Não se sabe se por impulso ou se por conseqüência duma reflexão já amadurecida, depois de inspirar vasta carga de ar presa nos seus pulmões, Théo começou a falar, primeiro sussurrando e logo após com veemência, sobre o proibido, sobre o assunto pelo qual cada membro da família, ao entreolhar-se, sentia uma sincera vergonha, tal era pejo que reinava naquele tempo.

Quanto vale este pão que o senhor nos coloca à mesa, pai? Após ouvir as primeiras palavras claudicantes do seu filho mais velho, o pai fez-se valer da sua insensatez para as frases que estariam por vir e começou, demonstrando indiferença e desprezo a Théo, a vozear, em tom linear, o padre-nosso de todos os dias e de todas as ceias. Os dois outros filhos, que eram um pouco mais novos que o primogênito, ainda petrificados na passividade, de modo a não contrariar o desejo do pai e, em conseqüência, entrar também em atrito com ele, acompanharam-no nos primeiros versos com aquela timidez que enrubesce os que traem, de forma clara, alguém que lhes considerava amigos. Um pranto preguiçoso começou então a escorrer pelas suas bochechas, através das quais, como se fossem pontes, os pequenos pingos ligeiros encontravam a carnadura dos lábios lívidos, salgando a saliva que era pouca e já amargava. Ouvindo a oração cercear nos seus tímpanos, fez-se de decidido quanto às suas vontades, e decidiu disputar o timbre de voz com o seu pai.

Este pão que você nos coloca à mesa não vale o quanto tem rezado. Desde pequeno, quando freqüentava às missas e demonstrava-lhe o meu respeito e reconhecimento tirando as melhores notas, sendo o mais exemplar entre aqueles que debochavam dos meus tênis velhos e da minha calça surrada, quem tem nos trazido o pão, preenchido as pequenas lacunas das nossas barrigas não é Deus, com suas mãos higiênicas e macias, sempre afáveis e misericordiosas aos que se dispõem a sofrer; não, pai, não é Deus, mas somente o seu trabalho. Mesmo que você não perceba e sempre me tenha na conta de veleidoso e pervertido, sempre procurei desviar-me das suas injúrias e indiferença, pois devo-lhe a vida, os cadernos com que estudei, os lápis, a matrícula na universidade; não agradeço a mim absolutamente nada, eu sou o que você fez, e até mesmo a coragem para driblar os obstáculos e transpor os infinitos muros, não é minha, é toda sua; só sua e de mais ninguém. Por que não deixar-me correr até a rua uma única vez? Por que proteger-me na égide familiar das árvores, dos pássaros e das pessoas? Ao menos uma escolha, de tal forma que nessa primeira e última chance transpareça o que verdadeiramente sou e que meu coração apela. Continuarei, depois disso, sendo o mesmo, para mim e para você, porque ninguém, na verdade, muda; o que há são pequenas transformações na pele, mas o coração, que é o principal, é sempre o mesmo.

Visivelmente aborrecido, o pai deixou bruscamente a mesa com a sua cara fechada. Sentiu-se atingido mortalmente pela lógica, não sendo possível um movimento mais rápido para esquivar-se da enxurrada. Haviam fincado a sua aparência, delatado a ordem que, com afinco, cimentara. Caiu perante pés alheios e, num último momento, conseguira fugir com a ferida aberta, vertendo sobre o chão bem pisado o sangue das suas certezas. Os mais novos, ainda petrificados e mudos, permaneceram fiéis à sua inércia. Théo, passados alguns minutos, levantou-se e foi para o seu quarto.

Um comentário: