domingo, 5 de setembro de 2010

O animal emotivo

Eu escreveria todas as manhãs cartas de amor e as deixaria escondidas debaixo do seu travesseiro, enquanto você dormia, com o rosto lívido e os cabelos espasmados espalhando os seus fios sobre ele. Porque diante da vida, a despeito de tudo que dela nos falam, ou nos portamos inertes diante da perplexidade, ou mentimos para nós mesmos como uma forma de aceitar o absurdo. E veja que tudo é absurdo. Inclusive essa minha moléstia terminal de submeter-me ao amor, desconsiderando que estarmos eu e você, nus sobre a mesma cama, não é um ato afetivo, não vem de dentro, não é produzido no coração. É uma construção histórica: uma atitude cômica de nossas vaidades. Para que tantos navios, se todos naufragam à chegada da costa, quando uma gente feliz nos esperava cantando modinhas por toda a areia? São tão rídiculas essas nossas lutas contra ventos que fazem moinhos. Que ao sul, depois do entardecer com o frio que vem de regiões geladas, nada serve, tudo perece ante o poderia ser. Quem dera eu me voltasse para a vida com a traquilidade com que você dorme. Sereno seria contemplar o desentendimento, por mais espasmódico e trivial que o fosse, a partir dessa alma abrandada e velha. Mas tenho a juventude dos degredados personagens míticos. Por ora me vejo um Sísifo com uma grande pedra despendida sobre as costas, por ora um Prometeu moído entre dentes sádicos. Porém, que me importa que lá embaixo pessoas morram dessecadas de fome, suscetíveis à brisa gelada que faz nessas épocas do ano, quando eu estou aqui, ao seu lado, vislumbrando um paraíso que se desenha no meio de grossas pernas brancas, em seios decadentes que são o moto-contínuo da vida, trancafiado entre concretas paredes de um prédio financiado? Amar e ter medo me traz segurança.

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