sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A morte de João

Reunimo-nos, todos, na sala daquela que fora a sua casa. Tendo sido, cada um de nós, pegados de surpresa, já no portão, ao deparar-nos com certo contingente de pessoas fazendo serão à entrada da varanda, receamos a certeza de que o corpo prostrado entre as flores de velório fosse mesmo o do João. Para desconsolo da nossa eternidade, era ele sim quem jazia dentro duma bela caixa envernizada, com algodão a preencher-lhe às entranhas do nariz e uma roupa casual a vestir-lhe o corpo inerte. A mãe, sentada numa cadeira posta bem ao encontro do seu filho gélido, chorava o desconsolo de poder ter sido tudo diferente. Quem lhe afagava os fios do cabelo era a sua comadre, que batizara este que agora imergia no mistério quando já tinha idade relativamente avançada. Alguns desconhecidos também vertiam lágrimas com a cena. O falecido era figura conhecida no bairro. Talvez chorassem a dó da mãe, ou simplesmente despejassem a quantidade de pranto exigida pela convenção fúnebre. Uma reza era repetida com afinco pelas religiosas do grupo de oração, muito pouco descompostas com a tenacidade daquele impacto, como se soubessem que aquela alma agora livre, e que em vida só desacreditara, a essa altura já estivesse num paraíso semelhante ao Éden. A um dos cantos, uns amigos casuais, com que o falecido cursara certo ensino técnico, contavam anedotas do herói que agora se ia, e rememoravam, sem discrição no uso dos esmerados adjetivos, quão largo e bom era o coração que cessara o seu movimento. Daí a algumas horas, sobre as quais perdurara a conversa recorrente empurrada pelo êmbolo da morte, levamos o corpo para o seu jazigo, onde a matéria resistiria por mais uns dias a presença do padecimento, até que fosse tomada integralmente pela podridão, e finalmente virasse pó. E nós, que fomos seus colegas de universidade, numa reunião promovida por força do acaso, sentamo-nos, calados e tristes, no trailler onde João sempre fumava e tomava café, e ficamos a pensar  nas circunstâncias que o levaram ao suicídio... Até que alguém disse: "ele era tão inteligente...".

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