sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Do esquecimento

Pelos lugares mais ermos, andando sobre as estradas mais longínquas, quando tentamos aquela reflexão de nós para conosco, como que por intervenção do destino aos nexos do acaso, deparamo-nos com pessoas vindas de terras distantes, com pés borrascados de poeira e a personalidade repleta de uma vida a um só tempo absurda e mágica. O mesmo ocorrera comigo, quando extenuado principiei uma viagem para lugar algum, a fim de encontrar, imergido no esquecimento imposto pelas distâncias, o curto quinhão de paz espiritual que todos desejam. Ele avançava pela estrada como um templário que não temesse; a face quase não se deixava mostrar em virtude dos panos que se enrolavam à cabeça e da barba, que se despejava, límpida e branca, até o peito. Em cada um dos lados de seu pequeno burro, dependuravam-se dois cestos e dois consideráveis potes d'água. Eu, como se estivesse pouco atento, como se me sentisse pouco vivo, como se houvesse em mim um vazio querendo extrapolar os meus limites, não dei pela figura que galgava os patamares do tempo da mesma forma que o ar penetra nos locais mais impossíveis. Então, quando por fim nos cruzamos, depois de ele ter ainda continuado o seu percurso com a cabeça flexionada à direção que eu seguia, puxou as rédeas do seu burro e, brando, chamara o meu nome com voz de pai: - Sensível! - Ao ouvir esse ruído que parecia ter sido elucubrado por uma criatura celestial, haja vista que achava estranho aquele senhor saber o meu nome sem que eu não o conhecesse, senti que os meus pés esfriavam à medida que eu tentava apurar, num fórum íntimo, o que agora, predicando o que exige a naturalidade, acontecia. Voltei-me para ele, e ouvi os seus lábios cantarem: - Sensível, meu adorado filho, queres ouvir a história do homem que não se permitia esquecer dos teus mortos? - Pensei que seria pouco educado da minha parte negar ouvir o que tinha a dizer aquela voz que se afigurava sábia. Assim, disse-lhe: - Por que me negaria o deleite em tal prazer, fazendo, além de tudo, grande desfeita a um velho que, ao que me parece, tem sede de ser ouvido? Conte-me a tua história, caminhante desconhecido! - Sorriu-me com a desenvoltura da elegância, e talvez querendo me agradecer o gesto, permanecendo com a sua postura de velho janota, curvou a cabeça para mim. Conseguinte, deu início a história: - Meu caro Sensível, mesmo que tenhas te assustado com a fortuidade com que o teu nome chamei, e queiras saber que faculdade dar-me o poder de discerni-lo, exorto-vos a não te preocupares com isto. O que posso dizer-te é que sou viajante bastante caminhado. Pelos mais belos e horrendos cantos da Terra eu já caminhei; conheci, igualmente, pessoas com as mesmas qualidades; e, se tem uma coisa que aprendi nestes anos todos de estrada, fora a arte do esquecimento. Todavia, isso começou quando trotava um passo vago sobre um deserto da China, e avistei, ao longe, uma cabana muito pequena. Como sentia sede, achei natural que me dirigisse àquele lar a fim de poder beber, caso assim o destino quisesse. Segui. Aproximei-me da cabana, desci do burro e o amarrei a uma tora de pau. Quando cheguei à porta daquela morada, um homem, de fisionomia introspectiva, ensaiou-me um sorriso, e disse-me: - Esperava-te, caro viajante... Entra, ora! - Entrei e falei-lhe que sentia sede; no mesmo instante, num ímpeto maquinal, tirou de um canto escuro uma cabaça que me oferecera, bastante altivo, pedindo que eu bebesse. Bebi. Passados alguns instantes cabisbaixos e silenciosos, como se tivéssemos asco à contemplação e sentíssemos-nos irremediavelmente cansados, de outro canto da cabana, de repente, ele arrancara um pequeno caderno e começou, sem muita pressa, a paginá-lo. Olhava-o sem muita tenacidade, sem enxergar importância. No que eu pensava era nas estradas que, mesmo compondo o perímetro dum globo finito e extravagante, eram sem fim, não acabavam nunca, tanto que eu ainda não havia chegado, e talvez nunca fosse chegar. Sobre o caderno, ele me disse: - Nestas páginas estão escritos, em letras muito legíveis, os nomes de todos os meus mortos. A esse exercício da lembrança, desde quando o inventei, chamei-o de Eternário. Aqui, linha por linha de cada página, revelam-se as características, os momentos mais importantes e as datas mais importantes que se relacionam aos mortos que conheci e assisti o padecimento. A minha cabana, naturalmente, existe pois eles existem, posto que escondo-me nela, nesse alheamento integral, para não vê-los morrer mais, os meus amigos. O exercício eternário, como tu podes bem observar, é muito exaustivo e se fundamenta em dois pontos nevrálgicos: morte e lembrança. Quando tomei consciência de mim e vi-me um ser perene, logo após ter presenciado a morte do meu querido pai e ter velado um amigo que pouco tempo depois também morrera, senti-me baixo e sem poder objetivo nenhum frente a essa terrível necessidade da natureza, a de sempre haver mortes. Angustiei-me deveras; sofri dores das quais mesmo hoje ainda tenho trauma; e, para ser-lhe sincero, esqueceria tudo numa grande dissipação da memória, se isto fosse-me permitido. Mas não é. A minha natureza cindida nunca me permitira que eu aceitasse esse detalhe; depois de ter pensado mais um pouco, e ter visto como o acaso nos afaga desde o nosso nascimento, refleti que deveria ir de encontro, remar contra o fluxo grosso da maré; tive a iluminação de que os meus, embora mortos, permanecessem conservados, nem que fosse apenas por mim. Pouco tempo depois destas mortes, uma conhecida dera-me um pequeno caderno, e disse-me que deveria despejar, nas suas páginas, os meus sentimentos mais verdadeiros. E a morte contornava tudo em mim, desvelando-se como única verdade em que eu acreditava cabalmente. No mesmo dia em que ganhei o caderninho, escrevi o nome do meu pai na primeira folha, e, além de ter posto nela as datas prementes de sua vida efêmera, também escrevi sobre situações as quais passáramos demasiadamente felizes. Na outra página, não obstante, escrevi o nome do amigo a que me referi, e ali também contei algumas de nossas aventuras. Sucederam-se, nas outras páginas, vários nomes, e à medida em que a lista crescia e eu me reportava o direito de lembrar, dia após dia, de todos os meus falecidos à revelia da minha memória humana e das minhas boas intenções, sentia-me cada vez mais desgastado e impossibilitado de preservar a memória de todos constantemente. As pessoas já não me viam: passava os dias trancado no quarto, só saindo para me alimentar e excretar o que não fora aproveitado pelo meu organismo. Havia dias, porém, em que eu não saía, porque não sentia vontade de largar o meu caderno e os meus mortos. De certeza, saía quando morria algum conhecido; então o enterrava, voltava para casa e anotava o seu nome e as suas características no eternário. Como se me sentisse mortalmente cansado, certo dia resolvi ir à praça que ficava em frente à minha casa, e percebi que o tempo havia passado e isso era assustador e eu não tinha vivido e eu não queria velar mais os mortos e não queria também esquecê-los. Sendo assim, decidi partir objetivando fugir da morte, de tal forma que não precisasse acrescentar mais um nome à agenda e pudesse exercitar somente a memória dos que já haviam morrido. E hoje, caro viajante, aqui estou eu, esboçando-lhe os fundamentos da minha distração terrena. - Após ter finalizado a história, o ancião voltara a soltar uma de suas risadas tenras. Também me perguntara se eu havia gostado das peripécias que acabavam de ser narradas. Disse-lhe que sim; disse-lhe que achava o eremita da cabana um louco e que eu jamais faria aquilo. O ancião voltou a sorrir e, como se soubesse demais, questionou-me: - Mas, ora, não estás fazendo o mesmo que ele? - Pus-me, então, a pensar...

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