terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Aos meus pais só posso dar cuspe

Cada um tem os pais que merece. Deus, como dizem os crentes, deu-me aqueles que achou suficiente - fez de mim, não omito, um incontente no que diz respeito. E o que ele queria? Para mim, é um segredo ainda não desvelado. Sendo franco ao dizer que não estou satisfeito com os meus progenitores, de valor efetivo nada há para ser feito ao revelar ter consciência disso: desde o meu nascimento os dados foram lançados, e além de fechar a cara para o destino, qual um ancião que não aceitasse a certeza da morte próxima, não posso querer acometer contra chagas que não se apagam, pois há um tipo de mal semelhante a tatuagens imanentes, não passíveis de soltarem à pele. De repente você é um feto aclimatado a uma barriga que não escolheu. Dentro desse mundo é tudo sombrio, sendo impossível saber o que é a vida lá fora. Você, ainda em fase de formação, portanto sem referenciais, está impossibilitado de se utilizar do cógito - mesmo que o seu pai e a sua mãe não tenham as características para serem reconhecidos enquanto tais, você irá nascer, e sem livre-arbítrio para decidir se quer isso mesmo ou não. Seu pai, membro de uma família decadente composta sobretudo por viciados, tem os seus dezenove anos e também dispersa o tédio com o parque de diversão das drogas. Sua mãe, mulher sem discernimento vinda de um interior funesto, está com vinte e nove anos de idade, já fez três abortos e não conhece a advertência do lírico português: é tudo deserto. O filho, o mesmo que lhes escreve, é uma semente que será germinada num mundo de lassidão e de exigências que ele não entende. Consorte à estética dos artistas do absurdo, aqui o que temos é uma arquitetura do hediondo - a maquete da agonia e do desespero. Reconheço o lugar-comum dito pelo poeta que se despe de suas roupas, mas, ainda assim, creio que não digo mal ao confessar que tenho pena de mim. Sim, sou um fracassado e, tanto pior, estou morrendo de preguiça. Pois que o mundo venha ao meu encontro - aqui estou eu, à sua espera, sem querer ou poder me levantar. Não me apregoem ao alcorão determinista; não digam de mim e dos meus pais vítimas de uma sociedade vil; somos vis em nós mesmos. E se temos de eleger um culpado para não padecermos com os encargos da consciência, não reportarei para os homens o sangue que eles fazem correr enquanto riem. Então, que Deus seja notificado por tudo e, em virtude disso, levado à cruz mais uma vez. Agora quero lhe dar minha conta de chibatadas.

Um comentário:

  1. Sinceramente, eu não tenho o que reclamar de minha relação com os meus pais. São pessoas geniais, cabeças abertas, compreensivas, mas que também nunca deixaram de dar aqueles famosos "puxões de orelha" nas horas em que meus desejos egoistas extrapolavam o limite.

    No entanto, mesmo tendo essa relação positiva com os meus pais, eu admito que de certa forma,por mais que eles busquem me dar o melhor possivel, hoje eu sei que o mundo é funesto e que as nossas buscas não passam de caprichosas e idiotizadas ambições muitas vezes ingenuas e muitas vezes inuteis.

    Eu realmente acho um absurdo uma pessoa adulta cantar alegrias por colocar um pobre animal-humano em uma realidade sanguinaria. Um pobre animal-humano que terá que aprender a ouvir não da mulher que ama, terá que admitir que querendo ou não, seu fim está marcado em algum lugar do mundo, que vai sofrer penosos remorsos por coisas incrivelmente obscuras, que vai se estressar por ter perdido um emprego ou por ter perdido a chave para entrar em casa e tantas coisas mais.

    Como um adulto que ja sabe de toda essa nojeira que é viver, eu acho uma sacanagem empurrar uma bica em uma xavasca e jorrar leitinho no quente de dentro pra colocar uma cria em mundo que nós bem sabemos que apesar de ter suas grandes belezas, possui suas grandes frustrações.

    Pior, sem ter pedido pra nascer!!!!!!!!!

    Lembrei-me de uma musica do Odair José chamada "O parto" quando ele diz: "na hora do parto eu pensei nas coisas que a vida não dá/ nas tristezas que a vida tem/ eu fiquei preocupado/com a vinda do meu neném"

    www.movimentotorto.com

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