segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Primeira missa

Viva alma, nas noites de domingo da região central de Aracaju, não há - só uma televisão gritando gol do Flamengo em surdina. Primeiro, no ônibus, um religioso, súbito, põe-se de pé e começa a ler, para os passageiros que lhe acompanham, a bíblia, tecendo, entre outras coisas, comentários interessantes sobre os ensinamentos de Cristo. Na sua boca variam palavras sobre a família e a responsabilidade dos pais diante de seus filhos. Diz dos genitores figuras salientes no que tange a formação moral de suas crias, estabelecendo, como passos fundamentais para a construção de uma harmonia cívica, o respeito mútuo entre ambas as partes, posto que a cidade é a dimensão geral de uma soma de casas nas quais são diferentes as visões de mundo. Frases muito simples, porém suficientes para atrair a atenção de todos. Somadas ao seu relato pessoal, sobre quando tinha posses e muitos amigos enleados a si devido a isso, tendo os perdido quando já lhe eram poucos os bens materiais, recaiu em cima de mim, àquele momento, um questionamento a um só tempo simplório e substancial: por que aquele homem, naquele ônibus, falava para aquelas pessoas, inclusive para mim, sobre assuntos tão claros ao discernimento? As dádivas do céu, quero crer, chegam até nós de forma inesperada, o que não as impossibilita de serem repassadas mesmo dentro de um ônibus por um homem que, na sua aparência comum e vocabulário enxuto, não parecia douto nos conhecimentos acadêmicos. Há uma semana atrás, se abordado por cidadão tão religioso e entendedor da palavra, talvez o rechaçasse com os meus trejeitos de agonia e indiferença, tirando àquela alma antes enrugada o direto à dignidade de ter ciência em Deus. Mas dessa vez não seria assim: ouviria-o. Assim o fiz. Pensamento contínuo, porque tinha chegado ao meu destino, desci do ônibus quando, ao que me parece, ele havia falado o que era necessário eu ficar sabendo. Conduzi-me, corpo e alma, para a catedral, regurgitando, num paciente solilóquio, os dizeres do homem. Como foi dito anteriormente, as ruas do Centro são um vale de sombras com postes apinhados em distância calculada. Por ele, com certo receio, passei, até que, finalmente, alcancei, como quem alcançasse luz no fim do túnel, as portas principais da Catedral aracajuana. Na sua fachada, em que podemos incluir como seu prolongamento a praça que circunscreve a região do templo, toda sorte de gente pinta um quadro de falência social e miséria em vizinhança da rica casa de Deus, imagens que podem levar um espírito frágil à descrença absoluta. Os dois reais que tinha guardados no bolso para gastar em balas de hortelã, os dei à igreja no momento do ofertório. Pensei em dar-lhes a um dos miseráveis que faziam serão frente às portas principais da Catedral. Porém, tomando em nota as palavras de Jesus, cabe lembrar-lhes que bem-aventurados serão aqueles que são injustiçados pelo homem soberbo - deles será todo o reino do céu. A rigor, não posso reconhecer como boba a minha decisão e o modo como agi. Se fiz de tal forma, não posso atribuir ao acaso os fundamentos da minha ação - apenas foi feita a vontade de Deus. Mesmo que não tenha me confessado, comunguei, pois senti necessidade. O tempo, que também age sobre mim, apagou da minha memória o sinal da cruz; nesse instante da missa, contornei os olhos para os lados e tentei imitar quem executava o gesto. Se fiz certo ou se errei, não posso ter certeza, mas, diante da dúvida, o que vale é a intenção - e a minha foi boa. Cânticos e mais palavras, apertos de mão e braços curvados ao peito Missa sagrada do domingo encerrada: pela frente, agora, novamente ruas desertas e ônibus.

Um comentário:

  1. Os mistérios de Deus transcendem o intelecto humano. somos como potes de argilas,mas que carregam valiosos tesouros. Com toda certeza Deus está fazendo uma grande experiência em tua vida, agora só lhe resta um esvaziar profundo, para que seja Ele agora o seu tudo, ou melhor aquela luz que surge em meio a noite escura.

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