quarta-feira, 23 de março de 2011

População versus Transporte público

Descartando os fatores de ordem natural como contribuintes no que diz respeito à modelação do estado de espírito de uma pessoa, Sergipe, não sendo quente, figurar-se-ia num verdadeiro paraíso, não fosse também as questões de ordem administrativa fundamentais à cristalização do estresse na alma das pessoas.
Além do calor contínuo impingido a nós, naturalmente, nessa época do ano, o excedente de arbitrariedades com que constantemente nos deparamos chafurda-nos numa espécie de náusea social, em virtude de que, tão grande é o desconforto e o disparate, sentimo-nos discursados nas grotescas narrativas de Kafka. Os labirintos ficcionais transcendem o âmbito das páginas e, sendo somados a inúmeras outras nuances que só podemos encontrar na realidade, passam a ser o panorama degenerado de nossa própria degradação, onde uns se batem e se perdem em função de que seja descoberta uma saída. A diferença, porém, concentra-se no fato de que as personagens, isoladas no contexto fictício da narrativa romanesca, procuram, para os problemas expostos pelo autor, respostas autênticas mesmo que simbólicas, enquanto nós, submetidos à situação concreta a partir da qual se engendrou a literatura, não – sucumbimos, diante da primeira falha, à passividade.
São passivos, por exemplo, os estudantes e trabalhadores, estes que constituem parcela considerável da população, pois, obrigados todos os dias a deslocarem-se de um lugar a outro por intermédio de um péssimo transporte público, não fazem nada, ridicularizam os que fazem e acham mais conscienciosos – já que nada vai mudar – aqueles que se mantêm de boca fechada, não demonstrando o seu pseudo-comunismo. Entretanto, quando em contato direto com uma situação desagradável, são os primeiros a lastimar a defasagem do meio de transporte que utilizam. Os pontos que podem justificar a péssima qualidade do transporte público de Aracaju são vários, entre os quais se pode destacar a falta de profissionalismo de boa parte dos motoristas e o excesso de pessoas em cada veículo como déficits principais a serem combatidos, haja vista que o preço da passagem, dois reais e vinte e cinco, é motivo suficiente para exigirmos o mínimo de quem põe a sua bota suja sobre as nossas caras – caras, mesmo.
Hoje, diante de uma inóspita situação criada pelo motorista do ônibus em que eu retornava para casa, não fazendo caso de que ele, assim como todos os passageiros, era tão vítima de um sistema social-econômico voraz e desumano, o xinguei e pedi que conduzisse o carro mais devagar. A minha atitude se deu em função do cansaço psíquico: depois de um dia inteiro na universidade aturando aulas de filosofia, e de ter suado todo o líquido do meu corpo, os nervos ficaram à flor da pele. Se justificamos, no entanto, todas as posturas ineptas dos trabalhadores em detrimento de uma totalidade de nem tão inocentes que eles põem em risco, suspendemos o argumento de que o ser humano é racional, uma vez que a intuição dos primeiros é descartada, apartando-os, assim, como meros condicionados e incapazes de uma visão própria. Ter-lhe xingado foi uma forma de levar às suas mãos, de novo, o senso de responsabilidade, chamando-lhe a atenção para os que no fundo conduzia, em si mesmos tão insensatos e irresponsáveis quanto.
Por fim, se nos valemos da pouca importância atribuída à questão por parte dos envolvidos nela, não é grosseiro afirmarmos que a cáustica realidade do transporte público de Aracaju só irá mudar quando houver alguma tragédia. Se depender do senso de aventura dos motoristas, compelidos a pôr em risco tanto a sua vida quanto a dos passageiros em virtude de cumprir os curtos prazos de tempo entre uma viagem e outra, isso não irá demorar a acontecer. 

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