quinta-feira, 5 de maio de 2011

Construção, de Chico Buarque, em análise

Do ponto de vista formal, é indubitável que a música Construção, de Chico Buarque de Holanda, diz respeito a um dos maiores logros das nossas letras. A poesia, encerrando em si uma quantidade considerável de substantivos e adjetivos, em dados momentos, seja por causa da mera permuta entre esses conceitos gramaticais, seja por causa da fluidez de sentidos gerada em decorrência dessa alternância, parece nos conduzir às raias do nonsense, delegando a ela mesma o papel de se auto-explicar, uma vez que a exegese do sentido geral procurado por nós, embotada pela semântica surreal de algumas orações, desafia a criatividade do crítico e lhe empurra para o cansaço. Estabelecidos, entretanto, alguns critérios de análise, a difícil tarefa que nos damos de interpretar essa letra incontestavelmente rica torna-se menos desgastante.

Se o método que aqui utilizaremos é o mais adequado, não nos cabe dizê-lo, pois cada um interpreta da forma que lhe parecer mais apropriada, desde que sejam respeitadas, claro, algumas evidências lógicas que o texto de Chico parece nos oferecer. Desse modo, seria uma impostura de nossa parte não analisarmos o poema nele mesmo, ao passo que a falta de citações, de referenciais históricos, ou qualquer coisa do tipo, não existem, sendo as verdades contidas nesta bela poesia dependentes, em sua totalidade, da existência de condições similares àquelas descritas em cada verso. De outro modo, a canção só pode sensibilizar o imaginário de pessoas que a ouvem numa época posterior à que ela foi escrita, se os elementos fundamentais da narrativa em análise tiverem continuidade assegurada. A construção e o operário, nesse caso, são partes elementares que superam o recorte histórico, ou ainda, categorias que se sedimentam à medida que as condições de trabalho do pedreiro na obra continuam as mesmas. Numa suposição mais romântica, Chico tenta, ao carregar o calibre do seu protesto de matizes puramente concretos, estabelecer condições para que a sua música dure, alcançando o amanhã mais do mesmo que virá, com vigor sempre reciclado.

Nos três primeiros versos da canção, percebemos que o personagem, ao se relacionar com os seus, o faz com profundidade, com ternura sincera e idiossincrática, a ponto de beijar sua mulher como se fosse a última e os seus filhos, cada um deles, como se fossem únicos. Nesse excerto mínimo da música, segundo o que nos confere, jaz o conteúdo de esperança dela, aparentando-se indissolúvel ante ao processo de degradação de mais adiante, no momento em que o homem chega ao trabalho, pois, mesmo que a degeneração perdure nas estrofes que sucedem, ela, a esperança, também perdura, vindo a estagnar-se somente num momento final, quando a própria forma de amar do personagem endossa o caráter maquinal com que ele desde o começo trabalha.

A confluência entre os substantivos e adjetivos, estes que variam de posição em orações que conservam uma estrutura básica, atesta o que fora dito mais acima sobre o nonsense, ou, a critério de quem achar mais adequado, o surreal. Mas essa ferramenta, observando-se cuidadosamente o seu uso, por ser manuseada por Chico com tamanha perfeição e de maneira precisa, acaba nos evidenciando a tese básica do processo de alienação, quando culmina, na penúltima estrofe desse poema genial, a total reificação do operário, que, a esse momento, já expõe os seus sentimentos de maneira lógica, a exemplo de um objeto que funcionasse com uniformidade cartesiana, segundo as coordenadas de uma irretorquível engenharia.

Isso posto, o que sobrava de orgânico no homem, ao assumir o ritmo do seu cotidiano de trabalho, esvai-se, restando-lhe apenas uma forma de agir instintiva. Ele não mais beija a sua mulher como se fosse a última mas como se fosse máquina, e isso coaduna o sentido permanente dos versos que se sucedem aos três primeiros das principais estrofes, em que a relação entre personagem e família é esboçada. Noutras palavras, ele passa a amar como atravessa a rua, como senta para descansar, ou como sobe a construção; ou seja, a consciência e os sentimentos se untam, tornam-se um bloco monolítico e amorfo, funcionando segundo uma indiferença da razão e das paixões. E é assim mesmo que ele cai depois de tropeçar no céu, ébrio em sua alienação, atrapalhando a via de mão dupla dessa grande avenida que é o progresso.

Num momento final, juntando a essa as palavras de uma outra música sua, a figura de Deus, após breves exposições da condição de vida do homem degradado, é trazida à tona por Chico. O Deus lhe pague, frase que nos remete a um contexto futuresco, é usado em direção de quem faz com que as condições mencionadas existam. Aqui, em última instância, é suscitado mais um dos elementos da poética de Chico Buarque: a ironia. Ainda que o pessimismo permeie a canção, fala-se, ao final dela, em redenção e paz derradeira. Em termos gerais, é como se o narrador tomasse as dores do personagem e, em nome dele e de todos os que vivem sob a suspeição da má sorte, desdenhasse, com ironia, daquele que oprime, colocando na conta de um tribunal-porvir o dever de que a justiça possa um dia ser feita.

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