domingo, 13 de maio de 2012

Darcy Riberido e a educação de nível superior no Brasil

As diretrizes da universidade constituem um corpo que, em sua carne, encontra-se enriquecido de princípios e finalidades cuja existência atesta a importância e a atenção que devemos atribuir a ela. Os problemas que a circundam, sejam eles de ordem política ou não, são também seus e devem ser encarados com a seriedade suficiente para dirimi-los, de modo que o ensino superior dê a si mesmo uma razão de existir e fuja à vacuidade dos propósitos que os “CÃES de guarda do pensamento burguês” têm imposto como aspirações fundamentais dele. Desse modo, cabe ao acadêmico encarnar o espírito irrequieto que direciona os passos de uma ciência ocupada com as questões mais caras ao seu tempo, tornando-se imune às meias-verdades vendidas descaradamente por aí. Para tanto, inobstante as possíveis dificuldades, faz-se necessário, naquele, uma inclinação sincera à busca ilimitada do conhecimento e à indagação permanente, a fim de que, em gozo da plena liberdade, possa contribuir com o fomento de uma universidade cujo único horizonte é a utopia – isto é, o avanço e a transformação social através da produção do saber e da descoberta de novos conhecimentos.

Darcy Ribeiro, eminente antropólogo brasileiro, em um texto-apresentação de 1985, Universidade Para quê?, ratifica os pontos anteriormente levantados, engendrando uma reflexão profunda acerca do ensino superior a partir da realidade que vivera enquanto peça-chave na criação da Universidade de Brasília. Esta instituição, então pensada como a vanguarda de uma revolução universitária no Brasil, durante o período em que a ditadura esteve instaurada no país sofreu com o descaso e a indigência de pessoas muito pouco comprometidas com questões caras à emancipação nacional. Se a UNB, quando de sua criação, ostentava como ideais a liberdade de pesquisa e o experimentalismo, se abarcava em seu esteio um corpo docente altamente qualificado e escolhido a dedo, o governo militar, uma vez no poder, fere-a naquilo que tinha de mais ambicioso e inovador: achata o livre-pensamento que enriquece; persegue, tortura, mata e extradita os professores que ali ensinavam. Ainda sob o calor destas circunstâncias, Darcy evoca alguns nomes tão importantes quanto o dele mesmo na mudança de rumos da educação brasileira e que também viram os seus sonhos e aspirações serem espoliados pelos milicos. Como é perspícuo ao interlocutor, as reflexões que sucedem no opúsculo são referenciadas pelo significado que a opressão contra a inteligência ganhou durante o período ditatorial.

Tencionando que o degredo responsável por imergir a UNB em trevas não se repita, o antropólogo coloca algumas metas para a universidade, ressaltando que de nada vale uma instituição de nível superior, onde o contraste e a busca são imperativos, descompromissada com a verdade. A utopia deve perfazer o seu horizonte, reunindo em uma unidade concentrada e vigorosa todo o saber humano, criando-se assim um diálogo sem intermitências entre variadas áreas para que, no espírito do trabalho conjunto motivado pelas mesmas razões, respostas e saídas sejam finalmente vislumbradas, sem o risco de que alguém, por pensar de determinada forma, seja tolhido. O Brasil, entretanto, deve ser o seu problema elementar, o interesse mais expressivo de sua existência – pensá-lo, dito de outro modo, é sua obrigação. E isso implica um esforço generalizado em todos os níveis: tanto estudantes quanto professores devem criar condições para que a universidade se realize, constituindo-se em lugar adequado a um país que, frequentemente, faz exames de consciência e enxerga os pontos em que precisa mudar ou continuar acertando. Não basta, para que tal aspiração se concretize, que doutores e mais doutores sejam formados, proliferando-se sobre a vida intelectual do Brasil como parasitas auleiros, sempre prontos a serem coniventes com o despotismo das gestões arbitrárias e a manutenção do bem-estar das classes dominantes. É imprescindível, sim, gente séria e sequiosa pela construção de um país melhor e mais solidário, que, se possível, sirva de exemplo a outros que enfrentam percalços parecidos. Como muito bem coloca Darcy Ribeiro, ao se valer da importância que os cientistas tiveram para super-nações como EUA e Rússia em época de corrida armamentista, “conhecimento é poder, é uma arma”, e manejá-lo requesta grande responsabilidade. Portanto, se os bacharéis formados não têm consciência do que está sendo posto em questão, se intentam desarmar de qualquer forma os benefícios da crítica vigilante, sabemos que eles são os frutos de uma universidade de mentira, interessada em mostrar à sociedade apenas uma hegemonia quantitativa que, no fundo, não reflete nada a não ser falsas-verdades e um interesse malicioso de que as leis educacionais fomentadas pelas elites sedimentem cada vez mais uma estrutura social defasada e ignorante sobre si mesma.

O que alarma nas reflexões de Darcy Ribeiro é a atualidade que podem reclamar. Se é conveniente caracterizar o período quando elas foram escritas como incôndito, confuso, posto estar ainda muito próximo do término do regime militar, tornando-o um autêntico tempo de ressaca, o hoje, quando não temos a opressão declarada e já amadurecemos as discussões sobre o porquê da universidade, pode ser caracterizado com quais adjetivos? Os elementos que compreendem a espinha-dorsal do texto de Darcy abarcam os déficits do ensino superior atual, como se ele não tivesse vencido a etapa inicial que conduz ao desenvolvimento efetivo, conservando a sua inutilidade e degenerescência. A função social da universidade não se traduz em ações reais, predominando dentro de todas e cada uma o verbalismo inócuo do artigo anacrônico, a malícia perniciosa do pós-doutor desnecessário, a vontade quase generalizada por coisa alguma. Por fim, recrudescendo a pontualidade da pergunta que intitula o texto aqui abordado, incrementamo-la com algumas indagações feitas por Darcy em dado momento de sua dissertação, por as acharmos exatamente atuais: “Que universidade nossa discute as causas do atraso de suas cátedras, como uma questão fundamental? Que universidade toma esses temas como sua causa? Todo o saber acumulado nelas é fiel ao povo que as subsidia para formar e manter as cabeças mais brilhantes?”.

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