domingo, 4 de novembro de 2012

O compromisso incondicional do conhecimento na Apologia de Sócrates

1 – Introdução

Marco da literatura filosófica ocidental, a Apologia de Sócrates constitui, em termos gerais, um longo discurso de defesa. Acusado de corromper os jovens em auxílio dos seus ensinamentos de caráter filosófico, de não crer nos deuses validados pelo Estado e de engendrar novos cultos, o pensador ateniense é levado a tribunal a fim de que se defenda das delações em razão das quais fora intimado, pela primeira vez em 70 anos, a estar sob a suspeição do júri.

Embora o faça sucintamente, posto que dispusesse das condições mais exíguas e compelido pela ameaça de condenação, o teor sintético de seu discurso não carece nem de precisão nem de beleza: sob a face de uma eloquência pontual e comprometida com a verdade, a Apologia abre margem a um tipo de pensamento que dá a si mesmo o compromisso ético de não faltar com a justiça, contrapondo-se, inobstante as consequências advindas da radicalidade que vaticina, às vicissitudes corrosivas instauradas na cidade – na pólis.

2 – Os primeiros acusadores

Sem se furtar às formalidades específicas ao ambiente em que tenta se subtrair dos ataques recebidos, o mestre de Platão remete-se, frente aos quinhentos cidadãos atenienses que ali se fazem presentes para compor o júri, às feiras e às praças onde tantas vezes concedera palestras gratuitas: precavendo-os do possível estranhamento que possam vir a ter com a espontaneidade de suas palavras, adverte-os ainda de que seu interesse maior está menos na polidez e no adorno do que na veracidade e justeza do que diz – o que corrobora, em um primeiro momento, o visível distanciamento existente entre os objetivos de sua filosofia e os intentos dúbios dos sofistas com os quais, por vezes, era confundido. Assim, avisa:

[...] cidadãos atenienses, por Zeus, não ouvireis discursos repletos de expressões e palavras vazias, ou adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente de maneira espontânea (PLATÃO, 2006, p. 56).

Ora, um dos motivos para que a figura de Sócrates tenha gerado, ainda que involuntariamente, tantos juízos falsos a seu próprio respeito tem a ver com o momento histórico decisivo que vivenciara: não muito distante dali terminava a Guerra do Peloponeso; derrotada para Esparta, Atenas tentava se reconsolidar politicamente enquanto democracia; em virtude disso, qualquer tipo de indisposição que viesse a ser alimentado na cidade, seja isolada ou coletivamente, punha em risco este objetivo.

Assim, o gênero de questão levantado por Sócrates na ágora, cuja novidade despertou a atenção dos jovens e o fez ser malvisto, mostrara-se decisivo para que os mais variados tipos de mentiras e torvelinhos começassem a surgir em torno de si. Entre tantas inverdades – como a advertência feita aos jurados, durante a acusação, sobre o seu poder de persuasão –, destaca-se a de que “Sócrates comete crime, investigando indiscretamente as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando aos outros” (Ibidem, 2006, p. 59).

Desse modo, podemos arriscar que a principal causa de sua acusação é política na medida em que, perquirindo através do método dialético a ambiência moral de Atenas, desvendava a todos que muitos daqueles que colocavam a si mesmos como seres sapientíssimos, os quais ocupavam às vezes cargos públicos de importância, não passavam, na verdade, de pessoas pretensiosas em relação àquilo que sabiam.

Neste ponto reside o fulcro da cisão entre a conduta moral-reflexiva de Sócrates e a postura oportunista dos demais: sob a inspiração do Oráculo de Delfos, que o intitulara como o homem mais sábio entre todos os outros em reconhecimento de sua grandiosa humildade, Sócrates sedimentava suas análises sem perder de vista a consciência de sua própria ignorância, decorrendo daí a famosa máxima “Só sei que nada sei”. Tal é a modéstia de conhecimento do pensador ateniense que, ao saber-se o homem mais sábio pelo Oráculo, tenta provar o contrário se defrontando com indivíduos que, no ofício que exerciam, eram nobres, proficientes. Assim, empreende palestras com poetas, políticos e artífices. Seu veredito sobre eles é bastante acertado e lúcido:

Contudo, cidadão atenienses, parece-me que também os bons artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitarem bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber. (Ibidem, 2006, p. 63-64)

Ora, não temos aqui um defensor inveterado da indigência e da ignorância. Durante as linhas da Apologia, percebe-se justamente o contrário, posto que toda a fundamentação da filosofia de Sócrates que se desenrola ao longo do seu discurso de defesa coaduna uma confluência necessária entre vida, pensamento e cidade. Ou seja: cônscio do caráter finito das ideias, só pode afirmar-se como conhecedor limitado das coisas, residindo no diálogo espontâneo o meio mais justo de abordar a tudo sob a angulação do devir. Desse modo, reconhecer as próprias limitações intelectuais coaduna a ideia de que ninguém, enquanto homem, é suficientemente sábio para se alhear de novas possibilidades de conhecimento. Embora a ignorância esteja sempre à espreita, a busca por novos horizontes de compreensão e entendimento deve ser contínua.

3 – Sócrates se defende das acusações de Meleto

Meleto, “tido como homem de bem e amante da pátria”, é um dos últimos acusadores de Sócrates. A delação que levanta contra o filósofo consiste na influência – segundo ele má – que o pensador ateniense vinha despertando nos jovens e no culto que direcionava a deuses diferentes daqueles em que todo o povo acreditava. Segundo Sócrates, na acusação versava mais ou menos o seguinte:

Sócrates comete crime corrompendo a juventude e não considerando como deuses aqueles em que todo povo acredita, porém outras divindades. (Ibidem, 2006, p. 65)

O início da refutação à acusação apresentada tem por base uma afirmação severa de Sócrates, segundo a qual “Meleto é quem comete crime, porque brinca com coisas sérias”. E continua: “Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal, dissimula ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca pensou” (Ibidem, 2006, p. 66). Como forma de provar a tese supracitada e desconstruir a acusação de Meleto, Sócrates dá continuidade à sua refutação puxando um diálogo com o seu acusador sobre quem pode instruir, da melhor maneira, os jovens. A isso, displicente, Meleto responde: “as leis”. Ora, mas não é essa exatamente a pergunta feita por Sócrates; tomando parte da resposta equivocada do poeta, o filósofo, como querendo levar o seu detrator ao reconhecimento de sua indigência, indaga: “mas quem sabe efetivamente as leis?”. Evidentemente, o domínio do corpo jurídico que anteparava a cidade de Atenas não era conhecido por muitos, havendo uma aceitação passiva dele pela maioria das pessoas. Meleto, no entanto, a fim de garantir a anuência de toda a plateia, afirma que todos os que se fazem ali presentes, por comporem o júri, estão gabaritados a instruir adequadamente os jovens. Sócrates, diante disso, ironiza: “todos os homens, como parece, tornam melhores os jovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso?”. E é exatamente isso que Meleto está afirmando. A ironia socrática, perante tal raciocínio, é utilizada sob a face de uma metáfora, ornada com um fato corriqueiro e cotidiano: o que acontece no adestramento de cavalos. Segundo Sócrates, da mesma forma que um grupo abrangente de homens é incapaz de adestrar os cavalos, sendo mais útil que um só os adestre, o mesmo acontece com os jovens pois, se apenas um homem conseguisse os corromper e os outros trabalhassem a favor de sua educação, seria em vão temer a influência daquele sobre os últimos.

Sócrates finaliza esse trecho de sua defesa afirmando que, na sua idade, jamais incorreria em um delito voluntariamente; portanto, caso estivesse pondo em prática alguma contravenção às leis, o fazia inconscientemente, sendo mais coerente, nesse caso, que fosse advertido a não fazê-lo de novo a ser levado onde são chamados aqueles que precisam de castigo e não de instrução. Observemos o trecho:

No entanto, ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é sem querer, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente, não há leis que mandem trazer aqui alguém por tais atos involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular, instruindo-o, advertindo-o; é evidente que, se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo sem querer. Tu, em vez de orientar-me com teus ensinamentos, evitaste encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei ordena trazer os que precisam de castigo e não de instrução. (Ibidem, 2006, p. 68)

3.1 – Contra a acusação de culto a novas divindades

O segundo momento da defesa de Sócrates contra as acusações de Meleto diz respeito ao fato de que ele estaria ensinando os jovens a cultuarem deuses distintos dos que eram cultuados por toda a cidade. Na verdade, Meleto, no diálogo, parece confuso quanto a essa questão, o que o leva a reelaborar, depois de ser inquirido por Sócrates sobre a natureza dela, a sua denúncia; assim, diz que Sócrates “não crê inteiramente nos deuses”, a ponto de chamar o sol de pedra e a lua de terra. Interlocutor atento, Sócrates diz que, se o fundamento de sua condenação se basear nisso, também Anaxágoras deveria ser acusado, ao passo que os seus livros estão cheios desses raciocínios. A displicência de Meleto leva Sócrates a pensar que está sendo zombado, uma vez que as palavras de seu acusador parecem, a todo instante, se contradizer. Sócrates ironiza:

De fato, ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: “Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem?” E, ao contrário, penso que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se dissesse: “Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses”. E isso, na verdade, é fazer zombaria. (Ibidem, 2006, p. 69)

O que parece deixar Sócrates mais frustrado é o tom gratuito, infundo e descompromissado com a verdade das acusações de Meleto. A resistência que o poeta alimenta em reconhecer isso, durante os diálogos, é visível, tanto que as respostas que fornece às questões trazidas por Sócrates são ligeiras e inclinadas ao atendimento de alguma pretensão individual (ou política).

O comprometimento com a verdade, o justo raciocínio, o zelo pelos atributos que compõem um espírito nobre e a consciência dos limites do conhecimento humano são, para Sócrates, qualidades divinas: não à toa que, em dado momento do diálogo, evidencia que o próprio Oráculo de Delfos confidenciou ser ele, Sócrates, o homem mais sábio entre todos justamente por não se gabar daquilo que sabia. E, se vive segundo a vontade do Deus cultuado em Atenas, acreditando portanto nas coisas divinas, por que estava sendo acusado de não crer inteiramente nas divindades oficiais? Desse modo, indaga: “Ao menos responde a isto: há quem acredite que existem coisas demoníacas, e demônios não?”. Meleto, mais uma vez provando seu descompromisso, responde: “Não há”. Sócrates, então, liquida a tese sobre a qual está calcada a acusação de descrença feita pelo poeta: “Ora, se creio que há coisas demoníacas, é absolutamente necessário que eu creia também na existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque não respondes. E não consideramos os demônios deuses ou filho dos deuses? Sim ou não?”. Logo, as acusações de descrença e culto a outras divindades não podem ser atribuídas ao filósofo ateniense.

4 – Acerca da morte: o bem viver e a retomada de Parmênides

Para Sócrates, uma vida só vale a pena ser vivida quando aceita se subjugar continuamente a exames sobre si mesma. Nesse processo de autoconversão, de interiorização, reside a forma mais sapiente de alimentar a virtude espiritual: estando acima de qualquer riqueza material, das formas que fazem belo um corpo, os atributos da alma são inestimáveis, valiosíssimos, decorrendo deles tudo o mais e não o contrário.

A impassibilidade diante das agruras decorrentes de uma missão que é dada ao indivíduo seja por ele mesmo, seja por alguém superior a ele, também constitui, para o filósofo, um gesto nobre – mesmo que a consequência desse ato convicto seja a morte. A sua vida, como de praxe, é próprio exemplo do que ele postula: perguntado se não se envergonhava de se aplicar a uma ocupação pela qual corria risco de vida, e pela qual tornara-se pobre, diz que um homem não deve se preocupar se corre ou não ou risco de perecer, mas de saber se sua ocupação é virtuosa ou não, se é justa ou injusta. Como forma de caracterizar a sua tese, recorda todos os semideuses que morreram heroicamente em Tróia, inclusive Tétis, “o qual para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo as palavras de sua mãe, que era deusa, e a qual lhe deve ter dito mais ou menos assim: filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e matares Heitor, o teu destino está terminado”. A reação de Tétis, ao ouvir a advertência da mãe, é de indiferença porque, para ele, a vida desonrada não sobrepujava, em nenhum sentido, a morte gloriosa.

Analisando a questão a partir desse ângulo, Sócrates enxerga no heroísmo baseado na defesa de princípios morais a cláusula sobre a qual se deve definir uma práxis de vida e uma ética para a cidade. Colocar a morte em detrimento da vida, temendo-a, é um ato condenável de pura ignorância, uma vez ela nos é totalmente desconhecida e não devemos fingir saber o que não se sabe. Retomando Parmênides, poderíamos dizer que a morte, para Sócrates, seria aquela trilha inteiramente insondável de que fala o pré-socrático no seu poema. Sendo assim, como apalavrar o imperscrutável? Como captar a essência daquilo que não-é, concluindo que a morte é desconfortável em vez de boa? Desse modo, levando em consideração tais interrogações, uma vida que se deixa ofuscar pelo temor da morte, evitando-a em vez de evitar desonrar-se e ser injusta, é uma vida intimidada pelo pior dos males: a ignorância.

5 – Considerações finais

Fica estabelecido, portanto, que o argumento central da Apologia de Sócrates não dista de uma espécie de libelo em defesa de um compromisso incondicional com a verdade. Verdade aqui, mais do que um postulado metafísico inapreensível, é uma palavra cuja conotação tem uma face fenomênica, ligada de modo estrito ao atendimento de uma necessidade ao mesmo tempo particular e coletiva, que só se realiza mediante a existência da ação real: isto é, se a relação de nós para conosco e com os outros necessita de um conectivo moral para se sustentar, este conectivo é a verdade que se funda na busca pelo autoconhecimento e na aceitação de que a nossa sabedoria tem limites, sendo-nos vedado, por conta disso, tornarmo-nos pretensiosos em relação ao que sabemos ou sujeitarmos os outros à nossa pretensão desonesta. E esse exercício, segundo Sócrates, deve ser colocado acima de tudo e praticado impassivelmente. Afinal, como ele diz:

A verdade, atenienses, é esta: Quando a gente toma uma posição, seja por considerá-la a melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, aí, na minha opinião, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de morte ou qualquer outro, salvo o da desonra. (Ibidem, 2006, p. 71)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo: Martin Claret. 2006.

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