sábado, 4 de setembro de 2021

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Loach. A linha em que o homem contemporâneo deita os olhos quando vence os limites da casa onde habita não é só a rua - é o horizonte. O juízo final antecipa-se à cronologia diária dos seus pensamentos, impregnando as horas restantes de angústia. Qualquer ninharia descasca o seu temperamento, abrasa o ânimo, desafiando-o ao enfrentamento da vida com a garganta cheia de cólera. A ubiquidade do inferno o consome inteiramente, expandindo-se sob a atmosfera invernal do seu coração como luminosos feixes de uma lucidez inclinada a todos os atos absurdos de servidão. Inobstante o calendário, os três estágios do dia, o tempo se transmuta numa força brutal e homogênea cujos braços açambarcam o ser desapossado, estabelecendo-se como linha divisória para a orientação de sua ação o maniqueísmo modorrento das horas de descanso e das horas trabalhadas. A indecência concupiscente da moeda projeta o seu espectro em todos os níveis da vida social, assombrando as relações e manipulando largamente a disposição dos acessórios cotidianos à satisfação ilimitada do cinismo financeiro. O sol poente, a paisagem comumente contemplada, como a vida do trabalhador, perece inesgotavelmente nos buracos negros do consumo. Ainda que a sua essencialidade à sobrevivência pareça inconteste, o circuito ontológico onde está alojado como peça impreterível esse labor é perpassado pelos fios da morte e do desprezo. O holerite se impõe à virilidade ao desconjuntar a rigidez dos músculos, domesticando no homem a sua ferocidade, acossando-o à unívoca escolha da reificação. Diante do diabo, encarnado nas colunas dos exércitos industriais ostracizados, nas mesas alijadas de uma ou duas refeições diárias, resta o abraço doentio do temor com a subserviência. Assim, desnuda-se a grande fatalidade da subsunção da existência pela dinâmica exaustiva do trabalho. Como em Paulo morrer é o grande salto para a libertação do espírito de um corpo agrilhoado ao pecado, em Ken Loach o filme é a larga janela pela qual a consciência contempla a formatação exploratória do capitalismo, encontrando nessa contradição a sua chance de liberdade.

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