sexta-feira, 1 de outubro de 2021

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Jonas e o circo sem lona“Que coisa espetacular viver de pão e circo!”, com estas palavras Roberto Piva celebrou a monarquia, enfatizando o projeto cultural romano de manutenção da ordem pela oferta copiosa de libertinagem. Subtraída a intencionalidade poética contida no flerte delirante com o absurdo, resta saber que a formalidade assomada ao excesso atua negativamente mesmo no quadro estrito da educação.

A narração dos fatos sob o compasso frio de sua realidade dada parece evidente na linguagem documental: exteriorizando, no quadro temporal limitado do filme, um olhar abrangente, diverso, que busca apreender as nuances que perfazem a problematização de um tema em sua totalidade, o documentário pretende-se relato fidedigno e transparente de uma história, da qual levanta hipóteses, recolhe conclusões e resultados. Contudo, confrontado com as descontinuidades que se estendem por aqueles ângulos não capturados pela câmera, o seu caráter de recorte se avulta, voltando-se contra a pretensão original, sem macular, entretanto, a relevância do conteúdo filmado.
Em Jonas e o Circo Sem Lona, documentário brasileiro dirigido por Paula Gomes, somos familiarizados ao talento e às angústias de um jovem periférico consumido por uma paixão arrebatadora pelo circo. Como todas as travessuras realizadas sob a lona lhe interessam, às tartufices do palhaço aplica o mesmo entusiasmo com que manipula habilmente os malabares e as bolas. O rigor dirigido à montagem do espetáculo só não é maior que a destreza corporal com que despeja sua presença ao público, o qual, em reconhecimento, retribui a felicidade suscitada com calorosos aplausos. Os tecidos coloridos, certamente roubados ao guarda-roupas da avó, realçam as paredes cruas do quintal de sua casa que, através de um esforço coletivo manufatureiro, imerge na atmosfera mágica do sonho, refletindo em cada adereço o esmero dedicado ao enfeitamento do cenário. Aí, além dos espetáculos cujo bilhete de ingresso pode ser adquirido a um real, são realizados diariamente os treinamentos, o aperfeiçoamento síncrono das exibições.
Apesar de se poder supor inexperiência em razão da pouca idade, Jonas domina todas as etapas da produção circense. Quando não está arregimentando colaboradores novos para suprir a ausência deixada por aqueles que abandonaram a causa, ora embrenha-se pelas ruas do bairro perigoso onde mora para fazer a publicidade dos espetáculos, ora dirige o seu corpo de palhaços na repetição exaustiva das atrações que serão apresentadas. O certo é, no entanto, que na impossibilidade de dedicar seu corpo a alguma tarefa exigida pelo circo, seja por estar na escola ou em qualquer outro lugar que o alije materialmente de seu habitat, ali, mesmo assim, sob a sombra misteriosa projetada pelas lonas, ele estará em espírito. Se a disciplina recomendada à escola na construção do currículo susta seu interesse pelos estudos, fazendo-o enxergar a experiência educacional como um arrastar de horas entediante, a seriedade que se recusa a aceitar em sala é dispensada regularmente aos colegas que não se comprometem realmente com as tarefas exigidas pelo circo. Se lhe falta comprometimento em assimilar os pormenores antiquíssimos da história antiga, ele o entrega inteiramente nos treinamentos solitários para os espetáculos.
A culminância desse conflito vivenciado por Jonas é marcada na divergência dispendiosa orquestrada no seio de sua família, dividindo mãe e avó em posições contrárias quanto à vontade alimentada pelo garoto de viver de circo. Como ambas conhecem o modelo de vida de um artista circense, uma vez que a inclinação artística é hereditária entre eles, ambas se relacionam com Jonas distintamente, embora impulsionadas pelo mesmo vínculo afetivo de querer bem a quem se ama muito. Enquanto a matriarca o aconselha e incentiva a não esmorecer do seu sonho, a mãe impõe-lhe limites e o atualiza a todo tempo sobre a relevância dos estudos.
Neste ponto, exatamente, mais do que apresentar conclusões e fechar o horizonte buscado pelo filme, impõe-se indagar o que está cunhado nas entrelinhas do documentário, principalmente quando endereçamos os nossos pensamentos à figura disciplinar da diretora que reprova mesmo a ideia do registro cinematográfico do Circo Tropical por não ver em Jonas um bom exemplo a ser seguido, denunciando que o parco interesse pelos estudos do garoto só aparece no momento das filmagens do documentário que o tem como protagonista.
Sendo assim, dada a desenvoltura e as valências adquiridas por Jonas em sua experiência com a atividade circense, cabe-se perguntar: a educação só atinge êxito quando municia o indivíduo de conhecimentos formais, capacitando-o, pelos seus métodos, ao regime de tautologias do trabalho, ou ela já se cumpre quando realiza no indivíduo a liberdade, dando-lhe uma razão firme de existir dia após dia?

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