sábado, 3 de abril de 2010

Acaso

Julgando saber toda a verdade, pois havia em si a convicção metafísica de se lhe ter apossado todos os caracteres que constituem as melhores sínteses, esperava  ele, encostado ao muro, encimado por cartazes, de uma loja tradicional do centro industrial da cidade, a primeira mulher com quem poria em prática as suas conclusões sobre o absurdo, que, segundo ele, desanuviara e se lhe tornara claro, sendo-lhe tudo permitido e justo agora, uma vez que fazer menção ao termo justiça, indicava-lhe, por conseguinte, a ausência ou impossibilidade dela.  Aos cantos da rua, pequenos sulcos de água suja seguiam para os esgotos retangulares espalhados ao longo de todo trajeto, não sendo, todavia, embora se visse muitos desses retângulos, suficientes para retesar o volume de chuva que caía dos céus, o que ajudava para que as calçadas, bem como o espaço frontal de cada imóvel da rua, se imergissem na água que, desde alguns dias, não parava de cair. Estabelecera pontos que lhe serviriam de base quanto ao julgamento de escolha de suas vítimas, tarefa que, a todo custo, parecera não lhe pesar bastante, pois, como ele mesmo julgava, era fácil se ler as feições das pessoas que levam uma vida à margem da naturalidade, opondo-se à ordem simples do estado de coisas, por buscar, de forma egoística, uma transgressão do prazer frente às outras pessoas, talvez por se acharem mais merecedoras que estas. As ruas, àquela hora, estavam todas desertas; viam-se, apenas, alguns cidadãos nauseados, sem casa e com vícios, perambulando de um lado para outro, como se, em algum lugar, pudessem encontrar a sorte – coisa que, de todo modo, não lhes era permitida. Os requintes de maldade se transfiguravam no semblante dessas pessoas com extremada singularidade, posto que, a degradação motivada por estarem suscetíveis às intempéries da natureza, à falta de ter o de comer, ou até mesmo o afeto que se assoma nas casas onde a progressão familiar parece seguir um fluxo ascendente de amor e amizade, a ausência de tudo isso lhes assegurava uma rusticidade que se erigia por si mesma, da mesma forma que o pequeno gramado nasce naturalmente nos canteiros dos muros, tirando a beleza das calçadas e manchando de verde a parte frontal das casas. Tirara do bolso esquerdo um maço de cigarros, em seguida, procurara no mesmo bolso o isqueiro; como se não achasse neste bolso o que procurava, começou a tatear os outros bolsos do seu casaco e, assim como no que perquerira primeiro, não encontrara nada nestes outros. “Mas isso é um absurdo! Como passarei sem fumar? Onde diabos deixei este isqueiro? Será que há por aqui algum lugar onde possa comprar um?” Seu estado emocional, visto a possibilidade de poder ficar sem fumar, se alterara nitidamente, porque há no cigarro alguma coisa além da realização do mero ato do fumo, podendo mesmo ser o mais importante a sensação de estar completo por algo que, nesse caso, seria a fumaça. Mas não a fumaça tal qual como a vemos; a fumaça como parte das cogitações daquele que pretendia pôr em prática as suas idéias sobre o absurdo. Desde quando se instalara ali, nada vira senão os cidadãos marginais já descritos. Começara a achar impossível que, naquela rua lúgubre e deserta, fosse passar alguma mulher de compleição física distinta, ou que pelo menos lhe aviltasse a vontade de fazer justiça. “Bem que eu poderia matar algum desses mendigos... Não faria diferença nenhuma... Ora, nem mesmo o Estado os olha e por que, caso eu matasse algum desses, o Estado haveria de se meter e me condenar? HAHAHA, Não estaria eu fazendo justiça? Dando paz a uma ovelha esquecida por Deus? HAHAHA, Que absurdo!” Depois de pensar nisso, perscrutou os arredores da rua; percebeu que uns homens, também mendigos e rústicos, olhavam para si como que desconfiados, procurando talvez algo que pudessem lhe roubar. Levou o abraço esquerdo à frente do rosto; já se passavam das dezenove horas. Pensou em ficar por mais algum tempo fincado ali; não havia por que temer os mendigos, afinal trazia consigo, na cintura, uma arma que utilizaria no momento da abordagem da vítima. Porém, tomando conta de que por aquela localidade estranha ninguém de interessante passaria, fora embora ainda com a idéia do teste enlevada no seu sistema de filosofia.  Quando já ia distante, saíra de dentro de uma casa que parecia abandonada duas jovens de cabelos lisos e pele rósea.  

Um comentário:

  1. perfeito! o que procuramos n encontramos, e o que deixamos de procurar, encontramos. Como diz o Pessoa: sentir é estar distraido

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