sábado, 17 de abril de 2010

Memórias Paternais

Era hora do jantar e Estelinha ainda não havia descido. Nunca, dentre os meus quinze anos e os doze anos dela, a tradição de comermos juntos havia sido mudada. Papai fora criado na pedagogia militar e prezava muito pela congruência dos milites em que obtivera a obstinação de não falharmos quanto a isso. Em particular, afirmava sempre aos meus colegas, a mamãe e a mim mesmo, não gostar cabalmente daquelas regras todas. Mas a sua aparência austera era muito maior que o meu desejo, e, condenar perante ele o que pensava daquilo tudo, era uma atitude impossível. Ele sempre se mostrara fechado e pouco receptivo a nós, seus filhos e esposa. Guardava maior parte de suas horas, como era aposentado, a paginação de livros e revistas científicas. Horas e horas nesse ofício que eu pouco me interessava, que me servia apenas para as atividades acadêmicas e para as notas boas, conseqüentemente, para livrar-me das surras devido aos assuntos escolares. Quanto à aparência, posso dizer que ele não era muito feio. Afirmo isto não porque achasse a aparência dele bonita, mas por sempre ouvir mamãe falando com tia Ana, sua irmã, que papai tinha outras mulheres na rua. De fato, às vezes, ele chegava muito tarde em casa. Geralmente, sempre bêbado e praguejando a sorte do mundo inteiro. Cuspia palavrões e mais palavrões em nós e atacava de esporro mamãe. Eu e Estelinha nos escondíamos no banheiro e ficávamos lá por horas, até que papai pegasse no sono e mamãe viesse nos buscar. Ela sempre fazia isso com as mãos crispadas, enxugando as lágrimas que escorriam por suas bochechas magras, tentando esconder de nós a sua fraqueza e infelicidade por viver tão má vida. Era modesto da nossa parte não perguntar por que ela fazia aquilo, mas na busca de criarmos em nossas mentes infantis uma firmação mais clara do que se passava, a perguntávamos e aumentávamos, assim, a melancolia dela. Quem poderia salvar aquele ser que vivia tão alheio à felicidade? Éramos pequenos e possuíamos músculos fracos. Sobrava-nos, como maneira de ajuda, sofrer a mesma dor que ela durante muito tempo sentira. E vivíamos assim, calados e jantando juntos, ao sabor defectível da aparência de boa família aos olhos dos outros.
É certo que dentro de cada casa que abriga pai, mãe e filhos, abriga-se também uma gama muito grande de demônios, algo que alguém já havia chamado de demônios familiares. A convivência, por si mesma, é um ato inverossímil, já que reduz a nossa realidade íntima a realidade de um monte de pessoas que pensam de maneira muito diferente da nossa. Estar sob o mesmo teto que um apanhado de pessoas estranhas, é a mesma coisa de ver ante os nossos olhos a própria dicotomia; ninguém nunca está de acordo com a vontade do outro e, todos, guardam dentro de si uma vontade feroz de assassinato. Falo, pois esta vontade que nasce quase como um poema ultra-romântico é factível, as atitudes vão condenando cada ente, e, quando nos olhamos, já carregamos um ódio e um cansaço sem fim dentro da alma. Daí, passamos a um estágio mais elevado. Normalmente, isso ocorre por volta do fim da adolescência, onde já nos encontramos exauridos e pouco precisos em sentirmos pena. O trabalho procrastina a nossa felicidade e pensamos não estar vivendo, pelo menos uma vida normal e igual a das pessoas que nos olham enquanto caminhamos na rua.  Acabamos nos tornando em condenados que pagam pena nos recônditos da própria alma, sentimo-nos tão neutros que começamos a buscar em tudo um por quê. Embalde.  Agora, somos predestinados à solidão, não agüentamos mais o ar familiar de nossas casas e, por fim, acabamos indo morar sozinhos; coisa que acontece com todo mundo.
O homem já nasce abortado. É a projeção do futuro que se constrói nas bases dum momento íntimo e noturno lancinante. Perante aquela mesa, no dia em que Estelinha não queria descer para o jantar, eu me sentia um feto que tivesse perdido as pernas, não diferente dos dias anteriores em que nos sentíamos intimidados em pleno momento do desjejum. Mas digo que daquela vez foi diferente, pois via nos olhos de papai certo ar de angústia. A melancolia havia invadido os seus sentidos, tanto que não percebeu quando sua mão acometeu de leve e derrubou o saleiro. Olhei-o de forma tímida e ousei lhe perguntar se estava tudo bem. Tendo voltado a si, não me direcionou palavra e pediu para que mamãe fosse ver o que Estelinha tinha. Nesse momento, confesso, senti um pouco de medo, ficar sozinho à mesa com papai era meio assombrador. O seu rosto nos remetia certo ar de alegria, mas a áurea de sua alma era tão pesada que não sentir medo era um ato heróico. Do nada, ele me apontou com os olhos e resolvera me assombrar mais ainda, fazendo o que nunca havia feito comigo antes. Perguntou-me:
- Como vai lá na escola?
Titubeei e, de súbito, não soube o que falar. Era tão esquisita a mim aquela pergunta simples, mas que, em virtude do seu afastamento e da sua pouca preocupação conosco, não me saíam da boca as palavras. Então, ele tornou a me perguntar:
- E a escola, como vai, garoto?
Ainda tímido, o respondi gaguejante:
- Vai bem, papai, vai bem!
Nessa hora ele abaixou ligeiramente a cabeça, como se quisesse me dizer “muito bem, meu filho” e logo depois disso aparecera mamãe, nos informando de maneira discreta que Estelinha não se sentia bem, tendo vomitado, mas que já se aprontava para cear conosco. Papai, que não era de muita palavra, fez também uma pergunta a mamãe:
- Mas o que é que ela tem?
Mamãe, sem olhá-lo, disse:
- Não sei ao certo. Ela esteve vomitando e me disse sentir enjôos contínuos. Até parece...
Neste momento Estelinha aparecera nas escadas e mamãe não findou a sua frase. Estelinha estava usando um vestido de pano simples confeccionado por mamãe, que, embora não prezasse muito pelo valor, tinha traços muito bem acabados. Estelinha o considerava o seu vestido preferido, tanto que hora ou outra o punha e enchia mamãe de felicidade. O vestido de Estelinha era bonito e alegre. Estelinha, não: era amarrotada e triste. Os seus doze anos de idade haviam sido maculados, mas ninguém, pelo menos naquela noite, subentenderia isto. Papai parecia um ser complacente e os seus olhos temiam alguma coisa. O que se esperar de enjôos constantes numa menina de doze anos que mal conhecia a rua? O incesto caiu sobre a nossa família como uma pedra que pesa toneladas. Logo papai que se mostrara tão correto, nos mostrando sempre o caminho correto, aplicando-nos o correto como uma injeção, açoitando-nos com o correto e fazendo-nos perceber que o mundo era correto, logo ele faz isso e nos mostra o quanto o mundo é sujo e as pessoas também. Ter relações com uma menininha doce de doze anos... O que pretendia ele? Ver-se pelo menos uma vez na vida contrafeito a encenar o papel ridículo? Ou queria somente sentir próximo aos seus colhões uma vagina fria e sem pêlos duma menina que nunca ouvira falar em sexo? Logo papai, logo papai que sempre se mostrara tão moralista, nos mostrou a feiúra sem fim do imoralismo...
Naquela noite não se soube da gravidez de Estelinha. Depois de alguns dias, papai nunca mais voltou pra casa. Estelinha, segura de que ele não voltaria, contou a mamãe como ele a acariciava, e mamãe, pasma, a priori não soube o que fazer. Quando Estelinha estava com um mês de gravidez, nós nos mudamos para outra cidade a fim de que ninguém ficasse sabendo do ocorrido. O filho de Estelinha nasceu sem vida e nunca mais fomos normais. Nas bases do moralismo, éramos uma família bem esquisita. Portávamo-nos como desconhecidos dentro de casa, até que um dia resolvi abandoná-las, mamãe e Estelinha. E, agora, prestes a completar aniversário de setenta e dois anos, vejo que não sou um homem solitário, senão um desvão repleto de coisas velhas que só a morte pode apagar – a eternidade, com essa consciência, seria um sufoco. A vida toda eu fui mamãe e Estelinha, e papai nunca deixou de me ensinar lições sobre moralidade. 

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