sábado, 17 de abril de 2010

Os ponteiros se prostram

já são zero hora e, mesmo daqui,
do lugar impossível, onde não nasce a aurora,
o meu relógio não nega que o último trem,
sobre os trilhos fundidos em solda,
em pouco tempo, se não atrasar,
já vem.

Sobre os trilhos do inesperado, o trem da morte, a cada instante, se aproxima de todos nós. Encaremos, pois, a vida não como a vida em si, mas a transportemos, como fazem todos os poetas e filósofos, para o papel de metáfora. Suponhamos que tudo, nós e o mundo, se trate do transporte ferroviário. Nesse caso, como ainda me são confusas estas idéias, só tendo dado corpo, mentalmente, a uma parte do meu raciocínio, que tem como fim contextualizar tudo isso ao transporte ferroviário, encaremos então a vida sem alguns membros fundamentais desse maquinário que se nos apresenta.

Pede-se que encaremo-la assim, pois algumas partes, como a de quem guia a grande máquina, nos é impossível de se conhecer, a não ser que queiramos que se precipite sobre uma cloaca o fio de nossas idéias, numa espécie de religiosidade reversa, onde se vive um satanismo sem a crença em satanás, onde parece se desdizer a deus amando-o. Quão ridícula essa possibilidade; o ser pensante deve ser espirituoso, mas, verdade seja dita, pedir-lhe fé, ao que me parece, é demais!

Pois bem, somos todos seres ridículos amontoados a uma pequena galeria forrada por cartazes de propaganda, sobre a qual passam, de quando em quando, nebulosas nuvens de sonhos, fazendo com que nós, vertidos num mistério íntimo, cochichando conversas elegíacas que parecem esconder a fatal verdade, abaixemos as nossas cabeças para tão logo, quando com os olhos fixados à superfície concreta do chão atravessado por restos de chiclete pretos, tornemos a levantá-las, pois as nuvens sempre passam e, mesmo que não passassem, estaríamos todos sempre voltando a deixar nossas cabeças recurvadas. É por isso, assim creio, que nunca acreditei nos homens de postura ereta; estes, pra mim, são os que mais mentem e eu, confesso, os repugno: as suas costas parecem ter sido feitas para a genialidade; tudo neles reluz um extremado brilho, coisa que se não ver, por exemplo, nos rostos opacos dos misantropos retraídos, extremamente detestáveis, dentro de suas cavernas. São os que mais mentem, pois, a própria compleição física, totalmente proporcional à posição da coluna, não nega serem eles homens que fazem muito esforço. Sinto pena, por eu ser ridículo, de tal estirpe de homem, uma vez que eles, assim como eu, são seres com déficit estomacal e impossibilitados para um tanto de coisas que nos dá a vida. A diferença entre esse déficit, porém, não sei se é equanime: ao deles falta o regozijo com álcool em abundância e comidas gordurosas que há no meu, logo, por assim dizer, em se tratando de prazer, faz mais sentido ter hábitos alimentares como os que mantenho que, como eles fazem, alimentar-se de luz e mato, porque há leveza e verde; isso é ridículo! Em contrapartida, nos sobrevém o que ocupa os recônditos da felicidade dessa minha geração idiota, eles são flexíveis à prática dos esportes e à alimentação saudável e isso, como postula os livros incontestes da ciência médica, é tanto melhor que definhar como eu. O meio termo, ou termo único: espírito e atividade física; estar em dias com a bílis e o diafragma. Parece-me ser um axioma que sobrevive desde a época de Platão, quando não existia as linhas de trem que podem servir-se de metáforas para se tratar da vida. Quem dera de volta a fúria e o sangue dos grandes gládios, época na qual o homem era verdadeiramente preparado para a vida. Se Platão não foi soldado, não devemos encará-lo como um homem de sabedoria, só os fracos recorrem, em vez da sujeição ao caos e ao medo, à filosofia. Isso tudo é um disparate e ainda soa como se eu quisesse métrica. A concatenação das frases assim, de maneira tão espontânea e musical, não pode ser atribuída a mim; se é assim, é porque não foi a matemática que conjecturou a possibilidade da frase, mas deus que, antes mesmo dos homens, já trazia em si todos os idiomas, dando a todos, perfeitamente, a medida certa de palavras.

Concluo, portanto, que há uma plataforma onde nós, a pensar sobre os mais variados tipos de coisas, esperamos o último trem. E ele passa exatamente às zero hora. À zero hora? Zero designa a ausência; então, como se é lógico, o trem passa à hora em que o relógio, de objeto real e com utilidade prática, serve de repouso para os ponteiros que se prostram tristes quando o braço de seu dono pifa. Esperar é nada, e mesmo assim se carrega sobre as costas a bolsa pesada da sabedoria acadêmica. Os terminais são cheios de pessoas, as quais correm em demasia para o cercado intrasponível; quem possui olhos bons, diferençando-se dos míopes, deixa cansar a percepção com isso: como eles correm, tão entretidos na sua tarefa diária, como se aquilo, a miudeza das tarefas que desenvolvem, fosse a coisa mais importante do mundo; como se depois do dia interminável de trabalho, dos terminais, dos patrões e dos ônibus fossem receber, ao degrau mais alto dos que conquistam a vitória, a recompensa mais valiosa do mundo; só que não há valia nenhuma: o que se diz são frases falsas num mundo recheado de absurdos. A luta pela verdade nunca estancou a ferida de onde faz jazer o sangue, e todos os que matam e morrem, entupidos em saudosismo e feiúra, nas tantas guerras que parecem ser imanentes à vida, desembainham a espada como se fosse a poesia suspirada pelo poeta. Coisas desse tipo, embora sejam mesmo ridículas, são também muito cômicas, pois, contrariando os que cogitavam que o conhecimento científico tinha feito progredir a consciência dos homens, atesta que há um ponto fixo, impossível de ser mudado entre os seres humanos de todas as épocas: sempre dão mais importância ao ato inerte de pensar... E assim, vejam, surgem os Napoleões e Hitlers, essas figuras interessantes que fincam com palavras em negrito o livro aberto da história. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário