quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Meditação sobre os tipos de transgressão‏

É certo que as convenções agem sobre o que pensamos, condicionando, seja implícita ou abertamente, a forma como agimos, de modo que não sejamos estranhos a elas. Sem dúvida alguma, não há novidade nessa assertiva. As convenções são uma espécie de consenso coletivo traçado a partir de situações históricas que dão gênese ao que entendemos por cultura. De região para região, seja em âmbito nacional ou internacional, os paradigmas, mesmo que em alguns aspectos tenham certa semelhança entre si, diferirão, tornando a cultura de cada uma dessas regiões, em razão de como cada povo os encara, peculiar e valorosa em si mesma. Posto isso, se queremos saber se o presidente dos EUA é mais rico culturalmente que um índio habitante de uma região isolada da floresta amazônica, não podemos eleger o primeiro como superior ao último, pois ambos são produtos de contextos culturais distintos. Se falamos em cultura levando em conta aspectos globais, se torna injusta qualquer comparação de valor, posto que o índio, por não ser detentor da variedade de meios que possui o presidente, estará em clara posição de desvantagem no que diz respeito ao mesmo. Embora diferentes, as comunidades em que um e outro foram formados possuem regras de conduta que, isoladas como premissas para que haja socialização e interação entre os indivíduos que as compõem, fazem delas, nesse aspecto, semelhantes. Ora, o que as distingue são os mecanismos internos, pois, se analisadas externamente, os mecanismos mencionados são via de regra em qualquer lugar - se no ocidente, por exemplo, há vida espiritual, numa longínqua comunidade oriental também há. No que tange essas comunidades, outro aspecto similar entre elas é que, em detrimento da sempre presente vontade de harmonia, há transgressores. Estes variam de nível: podem ser ideológicos ou judiciários. Os transgressores ideológicos podem ser enquadrados à categoria dos judiciários, mas isso por haver falta de senso da parte de quem os acusa. Os transgressores judiciários, todavia, só podem ser enquadrados à categoria dos ideológicos silenciosamente, pois, na maioria das vezes em que isso acontece, os efeitos de se declarar divergência de opinião podem recair de maneira brutal ou vergonhosa sobre quem os julga. De lado essas considerações mais complexas, afirmamos aqui que a figura do transgressor, seja ideológico ou judiciário, sempre é incômoda. A prática da reflexão pode levar uma pessoa à transgressão ideológica e a ausência dos meios convencionais podem levar uma outra à transgressão judiciária. Salienta-se, assim, que o processo de transgressão resume-me na seguinte polarização: coerção e desejo. Se temos uma pessoa insatisfeita com a representação política de um dado governante que não tem se mostrado atento às carências da população, ela pode se opor a ele por desejar que as metas políticas do governo, em vez de impossibilitarem às pessoas o acesso aos meios legais para que vivam dignamente, façam com que elas tenham seus reclames atendidos. Noutro caso, porém, uma dada pessoa, por querer se enquadrar aos modelos elencados como ideais no lugar em que vive e não ter condições financeiras para isso, pode roubar uma outra. Nos dois casos citados, temos, respectivamente, exemplos de transgressão ideológica e judiciária. No entanto, não negando que seja premente a polarização citada, a transgressão pode ser individual, encerrada dentro do próprio transgressor, sem que ele queira necessariamente se enquadrar a modelos ideais de comportamento. Em casos assim a natureza transcende a vontade do indivíduo, e ela mesma assume o papel da transgressão. Por exemplo: um homem gordo, por sentir-se insatisfeito com a sua saúde, deseja emagrecer, só que, não conseguindo controlar a sua gula, a vontade de comer transpõe o seu desejo inicial e verdadeiro e vira o próprio mecanismo de coerção do que pretende. Ou seja, nesse exemplo temos uma vontade que anula a outra: a involuntária à revelia da voluntária. Levando isso para o campo da existência, percebemos que o mesmo ocorre com um homem cheio de dúvidas: mesmo sentindo a necessidade de ajudar os outros, a vontade de ajudar a si mesmo acaba transpondo àquela primeira, e a garantia de sua sobrevivência acaba compensando as misérias que envolvem as outras pessoas. Dito isso, concluímos que a transgressão ideológica e judiciária, quando comparadas com à que se encerra dentro do indivíduo, são mais confortáveis e fáceis de manipular. A última é quase satânica.

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