domingo, 15 de maio de 2011

Atenas e as corporações: acerca do documentário Corporation

Na oração fúnebre de Tucídides, quando recai sobre si a responsabilidade de homenagear com palavras os mortos na Guerra do Peloponeso, depois de fazer algumas advertências iniciais sobre os limites desta homenagem quando colocada em paralelo aos feitos reais dos bravos soldados e de trazer à lembrança de todos o significado do que os antepassados atenienses também fizeram em nome do povo e da democracia, ele passa a falar sobre a estrutura política da cidade, mostrando como os mecanismos morais instaurados sobre o tecido da população garantiam a manutenção de uma vida mais digna para todos. Baseada em princípios fraternais, em que os homens pareciam gozar dos mesmos privilégios civis, a democracia ateniense, antes de importar modelos de leis de cidades vizinhas, atestando a sua auto-suficiência derivada do bom-senso com que eram conduzidas as deliberações sobre a polis, servia de paradigma para estas mesmas cidades. Sendo Atenas interesse mútuo, Tucídides persuade, e com muita razão, aos que choravam seus mortos esclarecendo-os de que, na verdade, o motivo pelo qual eles, os soldados laureados com suas palavras, padeceram sobrepõe-se a dor da perda que cada um estava ali sentindo. Morrer na guerra, naquela ocasião, significava lutar pela vida da democracia e da dignidade que residia em cada casa ateniense. Os fins da guerra, por mais lúgubre que o dispêndio de forças e de sangue possa parecer, correspondiam à sedimentação do bem-estar coletivo. Doutro modo, o ateniense era uma pessoa que vivia para a cidade e seus interesses.

Em contrapelo do “não-lugar” que um dia foi Atenas, o tempo, em cima do qual a ciência deu largos passos, passa, e as sociedades hoje, ao contrário do que Tucídides viu e viveu, já reconheceram os seus imperativos técnicos, os mesmos que condicionam as relações interpessoais e as demandas políticas. Baseada na manutenção do lucro de quem a financia, a ciência, originalmente usada para mediar a relação entre homens e natureza, descartou a vulnerabilidade desta última e, sem atribuir importância suficiente a ela, agora a elenca como ferramenta a serviço da vontade de dominação de minorias detentoras de poder de mercado. Os Estados, cada vez mais distanciados das pessoas, tornaram-se também vítimas dos mecanismos de sujeição dessas minorias, ao passo que a sua economia, muito pouco baseada na produção de bens de consumo para a população, depende desmedidamente da iniciativa privada e, consequentemente, submete-se a interesses de ordem externa, o que pode ser atestado quando observamos os termos da política de globalização. Uma linha tênue ata a economia dos países, sendo delicado para aqueles menos desenvolvidos o insucesso das empresas e indústrias multinacionais abrigadas no seu terreno, uma vez que força produtiva que gera riqueza para elas é predominantemente nacional. Assim, a derrocada de uma dessas instituições corresponde à geração desemprego e miséria, logo, naturalmente, de prejuízos aos cofres estatais.

O que podemos observar no documentário Corporation, em tradução livre “A corporação”, é como a engenharia de otimização dos lucros, não de otimização das melhorias de condição de vida das pessoas no planeta em que vivem, denega toda e qualquer cláusula ética, fixando como horizonte último de suas investidas a hegemonia dos coeficientes e a subtração da concorrência. Por isso, pretendendo se colocar umas acima das outras, as indústrias e empresas travam uma espécie de guerra fria, lançando mão das estratégias mais mesquinhas para reinarem hegemonicamente. A constatação mais aterradora que pode ser feita quando extraímos questões fincadas nas entrelinhas do documentário, é que as pessoas que fomentam a guerra do empresariado, pelo menos maioria delas, formam-se em academias nas quais o que se prega, mesmo que superficial ou tendenciosamente, é um discurso totalmente outro. Isso, é válido que se diga, não corresponde à realidade de todos os cursos, sendo naturalmente o contrário nas graduações que têm como objeto de estudos aquilo que é a um só tempo o imbróglio e a salvação desses mercadores de interesses. Não seria conveniente, por exemplo, destratar o dinheiro numa aula de administração ou validar como atual a teoria da alienação através da mercadoria desenvolvida por Marx. As lições, tal qual uma palavra de ordem que não pode ser retorquia, não devem ser abordadas com o auxílio de uma visão crítica dos fatos, mas dadas de modo a negligenciar a verdade, o que corrobora a situação catastrófica do mercado esboçada pelo documentário, e sempre colocando como ponto a ser almejado os lucros, como se neles se concentrasse toda a substância da utopia. Dessa valorização do acúmulo ensinada nas universidades, a despeito das pretensões humanísticas que julgamos todas elas ter, florescem o individualismo, o fatalismo e a tragicidade que permeiam a contemporaneidade, inviabilizando o mais bem intencionado projeto de um mundo melhor que possa existir. O verbalismo, seja lá qual for a graduação abordada, é fator mormente nas universidades: vê-se ciências humanas impregnadas de pessoas que nada sabem sobre a humanidade, ciências naturais que nada têm a ver com a natureza e assim por diante.

Nesse sentido, os diversos tipos de instituições existentes, mesmo as religiosas, parecem convergir em relação aos propósitos: sobrepor-se, hegemonizar-se. As corporações, vistas sob diversas perspectivas no documentário, ambicionam supremacia, superação constante, e isso sem abrir mão de práticas desumanas e abusivas, de que derivam fenômenos que parecem surgir fantasmagoricamente, como o estresse, o câncer, a manipulação de opinião através da mídia e o insucesso de quem tem real compromisso em fazer algo por alguém ou alguma coisa. Embora tudo isso já seja do nosso conhecimento, o documentário Corporation logrou no seu objetivo: consegue nos suscitar mais nojo em relação ao oásis contemporâneo e evidenciar, com maior intensidade, que vivemos numa desértica realidade em que as coisas mais belas podem não passar de miragens fugidias.

Um comentário:

  1. gostei . o que consideramos belo na verdade e o efemero e inutil
    alan

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