quarta-feira, 11 de maio de 2011

Flâneur

Sublinho, com passos e tons parecidos, a estrada cotidiana, por onde me endereço ao futuro, depois ter almoçado ao meio-dia. É estarrecedora, ainda hoje, a visão do começo triste da tarde, quando o sol parece despejar calor mais acurado sobre as coisas situadas abaixo de si. Já ao portão, após abrir a boca que reclama às obrigações do dia o direito à preguiça do corpo e da alma, cruzo com um navegante confuso, vindo de uma distância ficcional, e ele, embora espreitado, não desvia para outro canto os olhos que miram, talvez sem reflexão, as botas de couro gastas. Os rostos sardentos de ontem, do mesmo modo tristes e suados, atentam-se aos veículos que dobram a curva de onde vêm todos os ônibus. Quando os que esperam são muitos, geralmente todos os coletivos param, e de dentro de cada um, impelidas umas às outras por força da necessidade, as pessoas nos observam, tentando sorver, através de nossa imagem exterior, alguma dedução que se apagará no próximo ponto. E a vida delas são espelhos nos quais vemos refletidas as nossas próprias faces, com as agudezas dos nossos traços como que transplantadas, de maneira perfeita, para a mera reprodução destituída de qualidades que lhe sejam próprias. Entretanto, desordenados, lastimamos a particularidade perdida estáticos, ocorrendo de nossa parte, assim, a aceitação da homogeneidade e das velas acesas em menção da morte do sujeito. Pensamento contínuo, de uma forma ou de outra, a contingência, não abordada como sucessão de interesses externos aos indivíduos, foi superada porque as vontades, no fundo, convergem, e é com os mesmos trejeitos que todos nós lidamos com a realidade. Não obstante, degustamos de igual modo o conhecimento. E é divagando no espírito da utopia que, depois do caos urbano recrudescido por um calor agreste, alcanço as portas da universidade, encontrando, semelhante à ontem, os mesmos vigias, os mesmos corredores gélidos e os amigos fumantes a discutir os grandes temas da filosofia e das artes. No compasso do tédio insere-se vasto número de pitadas no cachimbo e as estratégias empresariais que finalmente tirarão os pés apressados da lama onde se encontram atolados. Por aí por dentro passo horas, para depois, assim como no ponto em que tudo se inicia, pegar o ônibus que me conduzirá, dessa vez, até minha casa. O que distingue uma cena da outra é a violência da subida, motivada pelo interesse geral de deslocar-se, nesse caminho de volta, sentado num dos bancos. Embora superiores – tipos de peito aristocraticamente estufado –, matam e morrem pelo simplório, pelo frívolo e trivial, omitindo a eles mesmos, num cinismo imoderado, as advertências lhes faz a razão. Mas o tempo absorve tudo e, pelas onze e meia da noite, estou eu, já esquecido do que transcorrera durante o dia, a tomar café acompanhado de uma mixórdia de pensamentos que comporão inutilidades como essa que agora acaba de ser escrita.

Um comentário:

  1. Olá João...
    Um dia passado, assistido e interpretado.
    Cada palavra citada, explora diversas vidas e modos de viver. E pensar e refletir sobre elas, desde o mais comum ao mais absurdo, o torna um sábio expectador.
    Enchergar tudo isso em um mero trajeto, é como ter muitas almas dentro de um único corpo.
    Desculpe o descuido de não tê-lo acompanhado a mais tempo em seus escritos.
    Um abraço!

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