terça-feira, 17 de maio de 2011

Das idéias por um mundo melhor: o Estado teleológico de Kant

O século XX ficou marcado por ter servido de terreno a duas grandes guerras travadas entre países distintos que se organizaram em blocos. Tomando como pressuposto de maior importância os agravos decorridos delas, sem dúvida alguma, a Segunda Guerra Mundial, que inaugurou o uso de armas de destruição em massa nos combates, foi a mais mortífera e relevante. Somadas as baixas em Hiroshima e Nagasaki, podemos chegar a uma estimativa de cerca de duzentos e vinte mil mortos pelas bombas nucleares norte-americanas.  Se somarmos, no entanto, o número total de vítimas, entre soldados e civis, na referida guerra, chegaremos a um coeficiente de mortos exuberante, porque atinge facilmente a casa dos milhões.  A evidência de que a Primeira Guerra Mundial foi muito mais branda, desse modo, é clara – basta, para isso, compararmos o poder de fogo das nações em disputa nas duas guerras. Que anteriores à Primeira também tiveram proporções mais reduzidas nos é óbvio, ainda que em todas elas muito sangue tenha sido derramado.

Segundo a visão cosmopolita da história universal elaborada por Kant, caminhados para um grande Estado que compartilhará em si de fins teleológicos, no qual entrarão os povos numa espécie de consenso geral, e ao qual seremos conduzidos unicamente pela razão, posto que são fomento de nós as guerras e, diferente dos animais, somos os únicos seres a pensar e raciocinar, o que nos proporciona superioridade em relação àqueles que não gozam dessas privilegiadas características. Partindo do pressuposto de que a complexidade de uma guerra atesta que estamos cada vez mais próximos do que dissera Kant, talvez devêssemos enxergar a Segunda Guerra Mundial como um dos degraus finais à chegada no derradeiro amadurecimento. Além de ter envolvido diversos países organizados em torno de duas alianças primordiais, o poder de destruição das armas que foram utilizadas nela, e o número de mortos em decorrência das mesmas, seriam motivos suficientes para que definíssemos um estatuto ético, de modo que combates sanguinários e desumanos como esse não voltassem a se repetir.

Sobre isso que chamamos de estatuto ético também pensou Kant. Na sua oitava proposição acerca da história ele afirma que podemos “considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política perfeita internamente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições". O raciocínio de Kant é categórico e, se contextualizado com a Segunda Guerra Mundial, faz com que passemos a enxergar a sucessão de barbáries que se deram até chegarmos a ela, a Segunda Grande Guerra do século XX, como uma espécie de conspiração silenciosa da natureza em favor da criação de um éthos da humanidade. Doutro modo, quanto mais o espírito humano se mostre refinado para agir em inconformidade com a paz, surgindo disso confrontos proporcionais à refinação das idéias humanas, mais justificada a teleologia de Kant estará, uma vez que as cláusulas dos acordos estabelecidos entre as nações inimigas serão redigidas em virtude de que não haja embates semelhantes aos que foram já travados.

Na resposta ao que é esclarecimento ele parece sugerir algumas idéias para que as cláusulas estabelecidas não sejam violadas. Esclarecimento, para Kant, é a saída do homem de sua condição de menoridade. Os esforços, para que isso aconteça, dependem unicamente de quem almeja tornar-se independente, servo senão de si mesmo. O que impossibilita a concretização dessa jornada, muitas vezes, é a preguiça, a falta de coragem para o uso autônomo da razão, sendo preferível a quem vive sob essa condição agir e pensar sob a tutela de terceiros. Adverte, porém, Kant que, para haver esclarecimento, é fundamental que exista também liberdade. Um cidadão não deve se rebelar em voz alta contra as leis em vigência aonde mora, mas tem o direito de, caso ache realmente necessário, fazer observações em relação a elas. Os mais esclarecidos, em vez de utilizarem somente de maneira privada a sua razão, devem irradiar o seu derredor com ela, para que assim aqueles que ainda encontram-se embrutecidos possam também se esclarecer. O esclarecimento, sendo mútuo e usado com bom senso, parece dinamizar as relações estabelecidas no tecido social ao mesmo tempo em que as coloca sob uma vigilância contínua. Portanto, os agravos derivados do mau uso da razão se invalidam, ao passo que as pessoas passam a lidar racionalmente com as instituições e caracteres de onde vivem.

Desse modo, uma vez que tenhamos chegado ao Estado teleológico kantiano, a maneira com a qual passaremos a agir e pensar se daria como se expusera logo acima, viabilizando, se não a sedimentação de valores razoáveis de imediato, pelo menos vias razoáveis de chegarmos por fim a um consenso paulatinamente. Comprometidos moralmente com o bem-estar da sociedade, o horizonte que se mostraria perante nossas ações não corresponderia àquele de que só se germinam indisposições. Pelo contrário: não dando azo para o comodismo, o oportunismo e valores semelhantes, fixaríamos a sociedade sobre pilares estáveis e seguros, não criando mais condições para virem à tona dissensões em decorrência daquilo que devemos evitar por sermos, frente às outras espécies, singulares: racionais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário